Os intelectuais corajosos – Crônica de Nelson Rodrigues

Ah, sou um homem suscetível de violentas nostalgias. Gosto de falar da vacina obrigatória, do naufrágio da Barca Sétima e do assassinato de Pinheiro Machado. Sei que essas datas, esses fatos, exalam um cheiro de remédio de barata. Mas ótimo que assim seja. O remédio de barata é justamente o passado, sim, o passado em aroma.

Se me perguntarem o que é que se salva em mim, direi, de fronte erguida: — “A memória!”. Agora mesmo estou evocando o Rio do Fon-Fon, da Careta, do cinema mudo (o vilão do cinema usava olheiras de rolha queimada). Era também o Rio dos poetas. Hoje, o título de “poeta” não acrescenta nada ao próprio, nem aos familiares. Antes, não.

No tempo de Raul Pederneiras, o homem de rua, de retreta, de boteco, respeitava a inteligência. Quando eu tinha sete anos, uma vizinha me chamou. Disse arrepiada: — “Teu pai tem o intelectual muito desenvolvido!”. Meu pai fazia artigos assinados no Correio da Manhã. E, quando passava, havia o murmúrio: “Que cabeça! Que cabeça!”.

Naquele tempo, apontava-se o poeta no meio da rua. Ele era um sujeito fortemente individualizado como “o soldado”, “o marinheiro”, “o bombeiro”, “o pintor”. Este último punha no colarinho uma gravata feérica ou, melhor dizendo, uma gra­vata que era um repolho multicolorido. O artista plástico também usava um chapelão de mexicano de Hollywood. A gravata era como que a farda do pintor.

Hoje, ninguém respeita a inteligência, nem a inteligência se respeita a si mesma. Mas na minha infância o intelectual tinha o seu espaço. Nas salas, mocinhas e senhoras recitavam sonetos, com fundo de piano. E, nas ruas, o brasileiro chamava assim o quitandeiro, o sorveteiro, o garçom: — “Olá, poeta! Vem cá, poeta! Escuta aqui, poeta!”. Era-se poeta ou, na pior das hipóteses, “ilustre”, também palavra de soneto.

Lembro-me de um comissário de polícia que batia nos presos, ao mesmo tempo que os exortava: — “Confessa, poeta! Vais falar, poeta?”. E, quando o espancado berrava demais, a autoridade dizia-lhe: — “Engole o choro! Engole o choro!”. E o poeta o engolia. Era medonho.

De uns tempos a esta parte, tudo mudou. Até o charleston, até Benjamin Costallat, ainda se era poeta, ainda se era ilustre. Eis o que me pergunto: — “Onde e quando começou a degradação do intelectual?”. Vejamos. Lembro-me de certa atitude de Paul Élouard. Os comunistas iam enforcar um poeta. Sim, enforcá-lo como a um ladrão de cavalos. Alguém foi pedir a Élouard que assinasse um pedido de clemência. O poeta não se alterou. Disse, macio, sucinto, exato: — “Não assino”. E não assinou. Era um canalha.

Eis o que eu queria dizer: — o aviltamento começou quando o intelectual se politizou. Já não bastava ser “poeta”, “ro­mancista”, “ensaísta”, “dramaturgo”, “pintor”. Uma vez que a política é a linguagem do nosso tempo, o artista tem de sair de sua solidão criadora. Nunca se pediu um soneto a Bismarck, ou um romance a Roosevelt ou um drama a Churchill. Mas se exige do poeta que, apesar de sua nobilíssima covardia física, pegue no fuzil, trepe na barricada e atire como um Tom Mix.

Vejamos um romancista. Ele se desvia do ato literário puro, e por quê? Há suas vantagens. Assina manifestos, vai a reu­niões, bebe no Antonio’s, desfila em passeatas e não precisa escrever uma linha. Até os grandes fazem essa mistificação. A fúria religiosa de Tolstoi foi apenas um disfarce de sua impotência romanesca. Mas o pior são os jovens que, antes de chegar ao Guerra e paz, estão para sempre aviltados.

Ontem, escrevi sobre as indignidades de Sartre. Lembro-me de mais uma: há pouco tempo, ele mandou interditar a própria peça. As mãos sujas. Não se conhece nada parecido em matéria de aviltamento próprio, de autoflagelação. Por uma vaga injunção política, um artista se faz polícia de si mesmo e a si mesmo se mutila. E esse escritor tem a vil coragem de falar em “homem”, em “pessoa humana”, em “liberdade”. Nos seus escritos, ousa tratar dos valores da vida.

Por isso mesmo, Guimarães Rosa teve um gesto perfeito. Foi o menos político dos nossos autores e, repito, foi o mais autor de nossos autores. Era só autor, era só escritor, era só estilista. Nunca o vimos carregando faixas e pichando muros com vivas a Cuba. (Se tivesse de pichar, daria vivas ao Brasil, aos Tenentes do Diabo, a Magé, à praça Sete, ao Flamengo.) Uma vez, o velho Rosa almoçou com Antônio Callado e Otto Lara Resende. O autor do Grande Sertão passou duas horas pedindo ao Callado, pelo amor de Deus: — “Faça literatura! Romance! Teatro!”. No Brasil, é preciso pedir ao romancista para fazer romance, ao poeta para fazer versos. Guimarães Rosa foi apenas o santo da frase. A frase estava acima de tudo. E, porque não existiu politicamente, pôde levantar o seu monumento estilístico.

Dirá alguém que os nossos escritores de esquerda não fazem literatura, mas assumem uma atitude corajosa contra os Estados Unidos. Não há tal coragem. É facílimo atacar os Estados Unidos no Brasil e dentro dos próprios Estados Unidos. Até os norte-americanos se auto-atacam, com a maior efusão. Sartre mete o pau nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, cospe na memória de Pasternak. O nosso “intelectual de esquerda” não suspira contra a Cortina de Ferro. Lá a inteligência é diariamente estuprada. Ninguém diz nada.

A “não-resistência” aos crimes contra a inteligência começa no “intelectual de esquerda”. Ele não fará nada, jamais, contra o totalitarismo vermelho. Quando começou a Segunda Guerra Mundial, o “intelectual de esquerda” estava com a Alemanha nazista. Estava com Hitler por causa do pacto germano-soviético. O Partido Comunista Francês lançou um feroz manifesto contra a “guerra imperialista”. Queria que os trabalhadores de França cruzassem os braços. Sim, o “intelectual de esquerda” só descobriu as atrocidades nazistas quando a Alemanha invadiu a Rússia.

Só então Hitler passou a ser Hitler. Antes não era Hitler. Na queda de Paris, dizia-me um comunista: — “Hitler é mais revolucionário do que a Inglaterra”. Já vimos a hedionda auto-castração de Sartre no episódio de As mãos sujas. No seu gesto está todo o destino do intelectual de esquerda. Já se pode falar numa inteligência indigna.

Eu entendo o horror do poeta brasileiro que, a partir de Pasternak, desistiu de escrever. Chamado a assinar um manifesto de escritores, esbravejou: — “Não sou escritor. Sou uma besta”. E, como o colega insistisse, berrou de dedo na cara: — “Escritor é você! Você!”.

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