País sem Binóculos – Crônica de Carlos Drummond de Andrade

Não sei se também ao leitor, mas a mim costumam telefonar a horas chamadas mortas (horas, pelo contrário, em que se sente respirar até a fibra da madeira) para dizer alguma coisa que não é comigo. Em geral, chamam pelo Nosso Bar. Há sempre, na noite, uma pessoa querendo comunicar-se desesperadamente com o Nosso Bar. Já pensei em trocar o número do aparelho, mas desisti: quem me garante que outros indivíduos não estarão por aí tocando para o Meu Bar, e que os números não passariam a ser irmãos? Habituei-me a esse bar de número parecido. Procuro esclarecer ao telefonador que não sou o Nosso Bar, ele muito se admira, disca de novo, mas quer falar é com o Nosso Bar, ora essa. Só uma vez, entre as dobras do sono, atendi e resmunguei:

– É do Nosso Bar.

– Desculpe, foi engano — e desligaram.

Mas um instante depois, o telefone retiniu de novo, e, desta vez, outra voz:

– É do Nosso Bar?

Não sei se também tocam para o Nosso Bar, chamando este pobre cronista, que nunca pôs lá os pés. Mas a introdução vai ficando comprida, e eu queria é contar o telefonema do Vate-Noturno, que, por força mesma do nome, só costuma chamar-me quando, como no dizer homérico, os caminhos se encheram de sombra. Todas as noites, depois de ingerir umas e outras, sente necessidade de dizer-me pelo telefone palavras amáveis e, vez por outra, durezas. Nem sempre consegue dizer nada, mas entende-se o que ele queria exprimir, era um afeto, uma tristeza, um problema.

– Drummond? Aqui é o Vate-Noturno. Aposto que você não adivinha de onde estou falando.

– Do Nosso Bar — falei a esmo.

– Nosso Bar coisa nenhuma. Do bar da abi também não. Nem do Alpino.

Estou falando do Bar do Municipal. Acabei de tomar uma atitude, sabe?

– E ficou machucado?

– Você não conhece o Vate-Noturno. Pensa que sim, mas não me conhece a-bi-sso-lu-ta-men-te. Por que havia de me machucar? Bem, lá dentro o Bip está caminhando sobre o oceano, compreendeu? Mas eu é que não vou ver.

– Bip? Que Bip?

– Puxa! Você está um bocado fora. O Marcel Marceau, velho, quem havia de ser? Começou a segunda parte do espetáculo, a que eu faço questão de não assistir!

– O Marceau lhe fez alguma grosseria?

– A mim não, eu é que faria a ele se continuasse a vê-lo.

– Não entendi.

– Lógico que não entendeu. Pois se falta o binóculo.

– Que binóculo?

– O binóculo que eu não tenho e agora compreendi que é essencial. Comprei a duras penas uma galeria para ver o Marceau. E vi. Mas vi só o vulto, o contorno geral do gesto, não via o pormenor delicado, a sutileza das mãos, dos dedos, mil e um detalhes da mímica. Então senti falta de um binóculo. Perguntei ao vizinho da esquerda se tinha um para emprestar. Não tinha. A garota da direita, também não. Comecei a falar baixinho: “Binóculo, binóculo”. Depois, um pouco mais alto. E não aparecia nenhum. Entraram a fazer psst, aí eu me chateei e gritei: “Não se pode nem desejar um binóculo? É um crime ver Marceau a essa distância, deste planalto, sem binóculo!”. Aí me puxaram pelo braço e me tiraram de lá. Vim para o bar e estou satisfeito com a minha atitude. Você tem binóculo em casa?

– Nunca tive binóculo.

– É isso. Ninguém tem binóculo neste país. País sem binóculos! E querem ver Marcel Marceau!

Era meia-noite, e o Vate-Noturno ameaçava levar a outros bares a campanha do binóculo.

– Leve também ao Nosso Bar — sugeri.

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