Pecadora – Conto de Nelson Rodrigues

Quando viu o Chagas, no meio da rua, abriu os braços, numa efusão tremenda. Dando-lhe grandes e cordialíssimas palmadas nas costas, indagava, aos berros: “Como vai essa lua de mel?” O outro respondeu, na alegria do encontro inesperado: “Vai navegando! Vai navegando!” Amigos íntimos, de infância, não se viam desde o casamento de Chagas, dois meses atrás. E veio de Armando a sugestão: “Vamos comemorar o encontro.” Chagas tinha um compromisso para daí a pouco, mas o outro travou-lhe o braço; só faltou arrastá-lo:

– Deixa de ser besta! Vamos embora! Eu pago!

Chagas acabou aceitando. Entraram no primeiro café, abancaram-se numa mesa do fundo e pediram chope. E, então, no terceiro ou quarto copo, o Chagas, lambendo os beiços, começou:

– Sabe que foi um alto negócio eu ter te encontrado? — acrescentou, suspirando: — Estou numa situação dramática. Precisava me abrir com alguém, de confiança, fazer uma autêntica confissão!

Armando fincou os dois cotovelos na mesa, na expectativa de grandes confidências. Animou o amigo: “Mete lá!” Chagas pigarreou, lutando contra um derradeiro escrúpulo; baixou a voz: “Imagina tu a calamidade: arranjei uma pequena e…” O amigo o interrompeu, assombrado.

– Arranjaste uma pequena como? Conta este negócio direito. Não estás em plena lua de mel? Casadinho de fresco?

– Pois é, estou.

Armando deu um murro na mesa:

– Então, parei contigo! Isso é uma sujeira, que diabo! O fim do mundo!

Chagas, lambendo a espuma do chope, e fazendo uma patética autocrítica, concordava em que era uma sujeira, um papel vergonhoso. Gemia, desarvorado: “Caso sério!” E, então, após se saturar de chope, já com a sensibilidade moral embotada, Armando quis saber que tal a Fulana: “É boa?” Resposta frenética: “Espetacular!” E, na hora de pagar a despesa, o atribulado Armando desabafou: “Preciso chutar a cara.” Ao que o outro, num riso pesado e sórdido de ébrio, respondeu:

– Manda pra mim! Manda pra mim!

Grande ideia

No dia seguinte, à tarde, o Chagas irrompia pelo escritório do Armando. Logo de entrada foi avisando: “Olha: jantas hoje com a gente.” Armando que, na véspera, já faltara a um compromisso, quis resistir: “Hoje não posso. Fica para outro dia.” Mas o Chagas tiranizava, desde os tempos da meninice, aquele amigo:

– Pode, como não? Já avisei à minha mulher. Quero te apresentar à minha cunhada.

O outro, vencido, coçava a cabeça: “Você é de amargar, hein?” Foram, juntos, de táxi: e, no caminho, Chagas trovejou: “Você é uma besta!”

– Por quê?

– Evidente! Um sujeito, da tua idade, devia estar arquicasado! O casamento é a grande solução! Estás perdendo tempo e bancando o palhaço!

Armando riu, meio cético:

– Às vezes.

– Sempre! Sempre! É outra coisa! Falo de cadeira!

Quando chegaram na casa do Chagas, este foi enfático. Apresentou Armando à esposa nos seguintes termos:

– Tomem nota: este é o melhor sujeito do mundo. Por esse cara, ponho a minha mão no fogo.

Confiança

Desde o primeiro momento, Armando se sentiu, ali, como em sua casa. Criou-se instantaneamente entre ele e Dora (esposa de Chagas) e Lucila (cunhada) uma intimidade cheia de confiança, quase terna. Dora foi dizendo: “Meu marido só fala em você.” Ao apresentar Lucila, Chagas diria:

– É ou não é um biju? E Armando:

– Lógico!

Depois do jantar e do cafezinho, Chagas arrastou a mulher para o corredor:

“Que tal o Armando?” Dora admitiu: “Simpático.” E Chagas, num entusiasmo total:

– Não te disse? Batata! E olha: sujeito decentíssimo. Não vejo partido melhor pra tua irmã. Um achado!

Mas a mulher, reticente, sugeriu uma hipótese possível: “E se ela não gostar?” O outro protestou, veemente: “Ora essa! Não gostar por quê? Vai gostar sim! Aposto contigo!” Quando os dois voltaram, encontraram Armando e Lucila entretidos numa conversa imensa. Chagas piscou o olho para a mulher, como quem diz: “Tiro e queda!”

O romance

Foi um romance meio a muque. Todos os dias Chagas telefonava para o amigo: “Contamos contigo para o jantar.” E Armando, sem forças para resistir, dizia: “Não quero abusar. Tua mulher pode não gostar.” Chagas exagerava: “Vai te catar, vai. Pois se ela e minha cunhada fazem questão!” De vez em quando, inventava: “Olha: Lucila acaba de me telefonar perguntando se não ias lá hoje. Eu disse que sim.” E, um dia, Lucila, enfezada, foi ao escritório do cunhado. Interpelou-o, violenta: “Que negócio é esse?” Ele, pálido, perguntou: “Como?” E a pequena veemente: “O que é que você está tramando?”

– Eu?

– Você, sim! Ora veja! Afinal, quem é que escolhe o meu marido, hein? Você ou eu mesma? Que graça!

Chegara o momento de uma explicação que não podia ser mais adiada. E, então, com o máximo de autocontrole, ele fechou a porta à chave e veio se sentar ao lado da moça. Usou a sua voz mais doce e foi, de fato, de uma ternura cheia de humildade.
Começou assim:

– Presta atenção: não percebeste, ainda, que teu casamento é um grande golpe, um golpe espetacular? Pensa um pouco, pensa!

Ela o interrompeu, agressiva: “Ora, não amola! Golpe como?” Chagas desenvolveu o seu raciocínio: “Mas evidente! Mais cedo ou mais tarde você teria de casar. Não é mesmo? E é melhor que seja com o Armando, que é um bom sujeito, em vez de ser com um cafajeste.” Ela, pensativa, não sabia o que dizer. Fez a pergunta: “Isso não é um chute que você está me dando?” Chagas dramatizou:

– Pelo amor de Deus! Não faça esse juízo de mim! — baixou a voz: — Tu sabes, não sabes? Que és tudo para mim? — repetiu, com os olhos marejados: — Tudo!

Amor

Sem querer, sem sentir, Armando foi envolvido. Houve um momento em que, desconcertado, procurou o Chagas. Era uma boa alma, de uma ingenuidade desesperadora. Admite para o outro a sua perplexidade: “Não há dúvida que eu gosto muito de tua cunhada. Mas será isto amor?” Chagas bateu nas costas, cínico:

– Se isso é ou não é amor, só Deus sabe. Mas uma coisa te digo: casamento não tem nada a ver com amor. E nem se deve amar a própria esposa. Não é negócio e só dá dor de cabeça. Compreendeste?

Essas ideias, que o desconcertavam pelo cinismo, faziam Armando sofrer. Chagas continuava: “A esposa é a companheira, a sócia.” Em suma: só faltou dizer que só a rua, e não o lar, era compatível com o amor. Mais tarde, com Lucila, Chagas esfregava as mãos de contente: “O Armando está indo que nem um patinho. Não enxerga dois palmos adiante do nariz. Qualquer conversa meio confusa o convence.” Fazia projetos:

– Quando tu casares, eu estarei lá rente que nem pão quente. Acabo sendo o padrinho de vocês.

Olhava a cunhada: “Que vontade de chupar esses peitinhos!”

O padrinho

E, de fato, quando fez o pedido oficial, Armando virou-se para o amigo: “Eu e Lucila fazemos questão que tu sejas o nosso padrinho.” Nessa altura dos acontecimentos, o pobre Armando perdera as dúvidas anteriores. Acreditava-se apaixonado. Uma vez por outra, perguntava ao Chagas:

“E aquele teu caso?” O outro, cheio de si, mentia: “Dei um chute naquela cara.” E ria, piscando o olho:

– Imagina a calamidade — duas luas de mel, ao mesmo tempo. Isola! E tudo correria no melhor dos mundos, se, às vésperas do casamento, Lucila não começasse a ficar triste. Suspirava pelos cantos. E, um dia, a sós com o Chagas, teve uma explosão: “Acho horroroso trair um homem!” Era este, de fato, o seu drama, esta a sua crise. E dizia: “Não sei se terei essa coragem…” Chagas acabou perdendo a paciência; foi até brutal:

– Que tanto escrúpulo é esse? — e completou, incisivo: — Trair o marido não é pior do que trair a irmã!

Lucila, então, num desespero maior, gritou: “O marido não me interessa! O que eu não queria era trair você!”

Agarrou-se a ele; apertou entre suas mãos o rosto do rapaz: “Será que eu te posso trair, meu anjo?” E ele, tocado por esse amor, desorientado, balbuciava:

– É preciso! É preciso! — e argumentou: — É para nosso bem!

As núpcias

Na véspera do casamento, temeroso de que ela fraquejasse, o Chagas sussurrou: “Depois que tiveres um marido, vai ser um chuá pra nós!” Chegou o dia. Muito linda, Lucila casou-se no civil e no religioso. E veio, de noiva, para a casa, no automóvel iluminado, com o comovido Armando. Finalmente, quando se viram sós, na casa silenciosa, e o noivo quis beijá-la, ela se desprendeu, com violência. Recuou gritando:

– Não me toque! Não me toque! — torcendo e destorcendo as mãos, dizia: — Eu quis ser de dois, mas não posso, não está em mim!

Meia hora depois, a chamado do marido, Chagas e Dora compareciam. Lucila, é claro, escondia, ferozmente, a identidade do outro. Trancaram-se as irmãs numa sala. E vendo que não extorquia o nome, Dora deu-se por satisfeita:

– Eu não te condeno! Tua atitude é linda! — repetiu: — Linda!

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