1910
QUEM DOBRA O MORRO DA SAMAMBAIA, com a vista saturada pela verdura monótona, espairece na Grota Funda ao dar de chapa com uma sitioca pitoresca. E passa levando nos olhos a impressão daquela sépia afogada em campo verde: casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de santo Antônio com os desenhos já escorridos pela chuva e a bandeira rota trapejante ao vento. Dois mamoeiros no quintal apinhados de frutos; canteiros de esporinhas com periquito em redor e manjericões entreverados. Um pé de girassol, magro e desenxabido, a sopesar no alto a rodela cor de canário; laranjeiras semimortas sob o toucado da erva-de-passarinho.
Nos fundos da casa vê-se o lavadouro, descoivarado apenas, num poço onde o corgo rebrilha três palmos d’água. Sobre um tabuão emborcado a meio, lá está batendo roupa a Marianinha Pichorra, mulher do Pedro Pichorra, mãe de nove Pichorrinhas. É ali o sítio dos Pichorras e até a Grota Funda já é conhecida por Fundão da Pichorrada.
Por que os antigos Pereiras de Sousa, do Barro Branco, vieram a chamar-se Pichorras?
É toda uma história.
Pedrinho ia nos onze anos. Já se destabocara e já preferia, em matéria de fumo, o forte, bem melado. Na véspera realizara o sonho de toda criança da roça – a faca de ponta. Dera-lha o pai como um diploma de virilidade.
– Menino, de ora em diante você é homem. Agredido, não gritará por gente grande; é mão na faca, pé atrás e corisco nos olhos.
Não lhe falou assim o pai, mas leu Pedrinho essa fala na lâmina rebrilhante. Por isso irradiava de orgulho, imaginando pegas, aloites, tempos-quentes e tocaias onde a “sardinha” alumiasse.
O pai, naquele momento de pé na soleira da porta, assuntava o céu. Viu que chover não chovia — e:
– Pedrinho! — gritou para os fundos.
– Pai?
– Vá pegar a égua.
O menino passou mão do cabresto e mergulhou no pasto. Minutos depois repontava trotando em pelo a Serena, égua velha, de muita barriga mas aguentadeira.
– Dê milho, do mole, e arreie.
O pequeno debulhou duas espigas no embornal e, enquanto a égua mascava o lambisco, alisou-a, ajeitou-lhe no lombo pisado um saco velho, depois a carona, o lombilho, o pelego.
– Não coche demais a barrigueira. Tem potrinho.
O menino folgou dois dedos o arrocho e esperou um bocado, enrolando o cigarro, até que a Serena parasse de mastigar. Por fim, arrumou o freio e montou.
– Agora você vai no sítio do Nheco e diz praquele tranca que dou o capadete pelos vinte e cinco mil-réis.
Pedrinho abriu cara de quem estranhava a ordem.
– Sozinho?
– Ué! E a faca, então? Não é “companheiro”?
O argumento valeu. Pedrinho, sem mais palavra, deu rédea e, lept! lept!, arrancou estrada afora.
O pai, alisando maquinalmente um palhão de milho, acompanhou-o com os olhos até perdê-lo de vista na primeira curva. Depois monologou:
– “Sozinho”? Ué! Até quando? Precisa acostumar. Onze anos. É homem.
Eu com dez varava sertão.
Pedrinho trotava pela fita vermelha da estrada, sobe e desce morro, quebra à direita, à esquerda, pac, pac, pac… Ia pensando na volta. Teria tempo de transpor a figueira antes de escurecer? A figueira… Passavam-se ali coisas de arrepiar o cabelo. Pela meia-noite — diziam — o capeta juntava debaixo dela sua corte inteira para pinoteamento de um samba infernal. Os sacis marinhavam galhos acima em cata de figuinhos, que disputavam aos morcegos. E os lobisomens, então? Vinham aos centos focinhar o esterco das corujas. Almas penadas, isso nem era bom falar! Quando o Quincas da Estiva contava casos da figueira, não havia chapéu que parasse na cabeça.
Mas de dia, nada; passarinhada miúda só, a debicar frutinhas. Foi o que o menino viu naquela tarde ao cruzar com a árvore. Mesmo assim passou rápido e encolhidinho — por via das dúvidas.
Chegou ao Nheco ainda com sol e deu o recado.
Nheco, marotíssimo, coçou o cabelo de milho da barbicha e embromou:
– Pois não. Mas… “não vê” que o toicinho baixou. De Minas tem descido um “poder” de capadaria que mete medo. De sorte que você diga pro pai que nestes “causos” eu não sustento o trato. Se ele quiser vinte e três mil-réis… Diga assim, ouviu? Vinte e três, ouviu?
Pedrinho desandou para trás, pensando consigo: “Safado!”. E veio todo o caminho absorvido em xingar mentalmente o aproveitador.
Ao defrontar com a figueira o medo agarrou-o. Escurecia. A luz do céu estava morrendo, pálida no alto, laranja esmaiada no poente. Por felicidade cruzaria a figueira antes da noite. Fechou os olhos, conjurou o encardido santo Antônio da família e transpôs dum galão o passo perigoso.
– Arre!… — exclamou com desabafo, olhando para trás e vendo a árvore maldita diminuir de porte. E pac, pac, pac, estrada afora, rumo ao sítio paterno.
Mas escureceu e, já perto de casa, vai senão quando a égua empina a orelha e passarinha.
– Égua velha passarinhou é saci! — sugeriu dentro dele o medo. E o menino retransido viu de repente no barranco um saci de braços espichados, barrigudo, “com um olho de fogo que passeava pelo corpo”.
– Nossa Senhora da Conceição, valei-me!
Assustado por aquele berro, o “olho do saci voou pelo ar, piscando”…
Pedrinho bateu em casa de cabelos em pé, olhos saltados. Agarrou-se com o pai, trêmulo, sem fala. A custo desfez o nó da língua.
– O saci, pai!…
— ?
– … pra cá da figueira… na curva… Barrigudinho… preto… O pai deu-lhe água na cuia.
– Sossegue um pouco, menino. E depois duma pausa:
– Você está bobeando, Pedrinho. Não há saci destas bandas.
– Juro, pai! Por Deus do Céu que vi.
E contou a viagem por miúdo, até a aparição.
– Altinho? Pretinho? — indagou o pai.
– Pretinho era, mas chatola, barrigudo, assim que nem pichorra grande.
– Então não é saci — concluiu o velho, entendidíssimo em demonologia rural. E depois:
– Fedeu enxofre?
– Não.
– ‘ssobiou?
– Não.
– Mexeu do lugar?
– Não. Só o olho. O olho andava e voava.
O caboclo refletiu um bocado, até que por fim uma ideia lhe iluminou a cara.
– Onde foi isso — pra cá do corguinho?
— É…
– No barranco?
— É…
– O olho andou e depois voou, piscando?
– Tal e qual…
– E o corpo ficou parado?
– Isso mesmo…
O velho clareou a cara e, desmanchando as rugas da testa, disse rindo:
– O que mais não se aprende neste mundo!… Sabe o que você viu, menino?
Você viu o saci pichorra…
E mudando de tom, depois de refletir durante um par de minutos:
– “Quedele” a faca?
– Pra quê? — perguntou o menino, desconfiado.
– Deixe ver, dê cá a faca.
Pegou dela e pô-la à cinta. E, ríspido:
– Vá dormir.
Pedrinho, compreendendo a degradação, ergueu-se com lágrima nos olhos.
– E a faca?
– Fica comigo. Pra você, porqueirinha, é canivete marca anzol ainda. E com infinita ironia:
– Vá dormir, Pedro Pichorra!…
O menino recolheu-se, sacudido de soluços. O velho pegou do borralho um tição para acender na brasa viva o cigarro. Baforou uma fumaça com o pensamento no falecido sogro Chico Vira, o caboclo mais medroso da Estiva.
– Por quem havia de puxar o Pedrinho, pelo Chico Vira…
E assim o rebento masculino dos Pereiras do Barro Branco virou, por troça do próprio pai, o tronco duma nova família, essa Pichorrada que hoje põe a nota sépia da sitioca na verdura da Samambaia. Tudo porque a velha Miquelina havia deixado naquele dia a pichorra d’água a refrescar ao relento à beira do barranco, e um vaga-lume-guaçu pousara nela por acaso, justamente quando o menino ia passando…