Procurando o alemão – Crônica de João Ubaldo Ribeiro

No começo, parecia fácil. Afinal, estamos na Alemanha e encontrar um alemão devia ser comuníssimo. Durante muito tempo, chegamos mesmo a achar que já conhecíamos uma porção de alemães. Mas agora não. Agora sabemos que as coisas não são tão simples assim e estou até com um certo receio de que chegue a hora de voltarmos ao Brasil sem termos sequer visto um único alemão. Comecei a descobrir isto por acaso, conversando com meu amigo Dieter, que eu pensava que era um alemão.

– Que coisa — observei, enquanto bebericávamos uma cervejinha num boteco da Savigny Platz —, já faz um ano que moro na Alemanha, como o tempo passa depressa!

– Sim — disse ele. — O tempo passa depressa, sim, e você acabou não conhecendo a Alemanha.

– Como “não conhecendo a Alemanha”? Durante este tempo todo, eu praticamente não saí daqui.

– Exatamente. Berlim não é a Alemanha. Isto aqui não tem nada a ver com a verdadeira Alemanha.

– Nunca esperei ouvir isto em minha vida. Se Berlim não é Alemanha, não sei mais o que pensar, tudo o que aprendi sobre a Alemanha até hoje deve estar errado.

– Então você acha que uma cidade como esta, com gente de todo o mundo, onde a maior dificuldade é achar um restaurante que não seja italiano, iugoslavo, chinês ou grego — tudo menos alemão — e o almoço de noventa por cento da população é döner kebab, onde você pode passar a vida toda sem falar uma palavra em alemão, onde todo mundo se veste de maluco e usa penteados que parecem uma maquete da Philharmonie, você acha que isto aqui é a Alemanha?

– Bem, sempre achei, não é? Afinal, Berlim…

– Pois está muito enganado, enganadíssimo. Berlim não é a Alemanha. A Alemanha, por exemplo, é minha terra, onde você nunca esteve.

– É, talvez você tenha razão. Afinal, você é alemão e deve saber o que está dizendo.

– Eu não sou alemão.

– Como? Ou eu estou maluco, ou você quer me deixar maluco. Você acaba ou não acaba de dizer que nasceu numa terra verdadeiramente alemã?

– Sim, mas isto não quer dizer nada, no caso. Minha terra é alemã, mas eu não me sinto alemão. Não me identifico com o espírito alemão. Acho os alemães um povo sombrio, sem graça, fechado… Não, eu não sou alemão, me identifico muito mais com povos como o seu, gente alegre, relaxada, risonha, comunicativa… Não, eu não sou alemão.

– Dieter, deixe de conversa, claro que você é alemão, nasceu na Alemanha, tem cara de alemão, sua língua é o alemão…

– Minha língua não é o alemão. Eu falo alemão, mas, na verdade, minha língua-mãe é o dialeto lá de minha terra, que parece com alemão, mas não é. Mesmo depois de anos morando aqui, eu me sinto mais à vontade falando meu dialeto, é muito mais espontâneo. E, lá em casa, se eu não falar a língua de nossa terra, minha avó não entende nada.

– Espere aí, você está me confundindo cada vez mais. Você disse que sua terra é alemã por excelência e agora diz que lá não se fala a língua da Alemanha. Eu não estou entendendo.

– Muito simples. Isto que você chama de língua da Alemanha, é o Hochdeutsch, que não existe, é uma invenção, uma abstração. Ninguém fala Hochdeutsch, a não ser na televisão e nos cursos do Goethe Institut, é tudo mentira. O verdadeiro alemão não fala Hochdeutsch em casa, a família toda ia pensar que ele estava maluco. Nem o Governo fala Hochdeutsch, antes muito pelo contrário, basta ouvir certos discursos por aí. Está cada vez mais claro que você não conhece mesmo os alemães.

Depois dessa descoberta, fizemos diversas tentativas de conhecer um alemão, mas todas, apesar de muito esforçadas, têm invariavelmente falhado. Entre nossos amigos de Berlim, não há um só alemão. Em números aproximados: quarenta por cento se acham berlinenses e consideram os alemães um povo exótico que mora longe; trinta por cento se sentem ofendidos com a pergunta, indagam se estamos querendo insinuar alguma coisa e fazem um comício contra o nacionalismo; quinze por cento são ex-Ossies que não conseguem se acostumar a não ser mais Ossies; e os restantes quinze por cento não se sentem alemães, povo sombrio, sem graça, fechado etc. etc.

Como nos resta pouco tempo aqui, a situação está ficando séria. Resolvemos até investir modestamente em algumas viagens. Escolhemos Munique para começar e estávamos todos muito contentes com a perspectiva de finalmente vermos alguns alemães, quando o Dieter apareceu para uma visita e nos explicou desdenhosamente que em Munique não encontraríamos alemães, mas bávaros, uma coisa é a Alemanha, outra é a Baviera, não existem coisas mais diferentes neste mundo. Um tantinho desapontados, fomos do mesmo jeito, gostamos muito, mas voltamos com a sensação chata de que não tínhamos visto nada da Alemanha, não é fácil conseguir ver a Alemanha. Não sei bem ainda o que vou fazer para evitar a vergonha que vou passar no Brasil, ao regressar da Alemanha tendo que confessar não haver conhecido a Alemanha. Uma coisa, no entanto, é certa: vou reclamar do DAAD por falsas promessas e deixar bem claro que, da próxima vez, ou eles me trazem para a Alemanha ou não tem conversa.

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