Rainha de Sabá – Conto de Nelson Rodrigues

By | 21/06/2022

Saíram juntos da festa. E o amigo vinha entusiasmado:

– Foi contigo! Fez fé com tua cara!

Referia-se à Teresinha Seixas que não tirara os olhos do Asdrúbal, num flerte escandaloso. Tinha sido uma coisa de chamar a atenção. Raimundo, eufórico, como se o beneficiado fosse ele, atiçava o outro:

– Está pra ti. Dá em cima, que é canja. Quero ser mico de circo se ela não entregar os pontos.

Mas o Asdrúbal, que era um tímido e exagerava as dificuldades, coçava a cabeça:

– O negócio não é assim, como você diz. É muito mais complicado.

– Complicado o quê! Barbada. E, ainda por cima, uma sujeita cheia da “erva”.

Tem pra lá de vinte mil contos. Sabes lá o que é isso?

Despediram-se, afinal. E o Asdrúbal, sujeito sem vintém, escravo do salário, entrou em casa, com aquilo na cabeça: vinte mil contos! Tirou a roupa e, nu da cintura para cima, ficou ruminando a situação que, subitamente se criara na sua vida. O fato é que Teresinha, filha do Seixas dos lotações, parecia interessadíssima e ele já se via rico, milionário, o diabo.

Romance

No dia seguinte, pela manhã, quando Asdrúbal entrou no emprego, encontrou o Raimundo, à sua espera. Tomara-se de um interesse medonho pelo caso. E foi logo intimando: “Olha aqui, sua besta, você vai telefonar agorinha mesmo para fulana.” Asdrúbal, que tinha horror da situação, quis escapar. Mas ele, implacável, coagiu o outro e foi ao cúmulo de fazer a ligação. Asdrúbal, quisesse ou não, teve que falar. Gaguejou no telefone, suou, meteu os pés pelas mãos. Raimundo, do lado, bufava: “Mas que animal!” E foi preciso que Teresinha, desembaraçadíssima (sabia até francês) conduzisse a conversa e inventasse os assuntos. No fim de dez minutos, a timidez de Asdrúbal evaporava-se. Ele se permitia, até, piadas. Raimundo soprou: “Marca um encontro! Marca um encontro!” O rapaz acabou tomando coragem e sugerindo o encontro. E quando Raimundo percebeu que Teresinha concordava, assoviou, de pura delícia. Finalmente, despediram-se. E, então, triunfante, Raimundo cantou vitória:

– Mulher, quando cisma com um cara, já sabe. Está no papo, direitinho!

E Asdrúbal maravilhado: “Veremos. Veremos.” Pensava nos lotações do sogro e suspirava.

Horas depois, num café, ainda confabulavam; e foi, então, que baixando a voz, Raimundo insinuou: “Tu me arranjas um emprego com o velho, não me arranja? Vê lá! Sou teu, do peito!” E insistiu:

– Mas um emprego bacana. Mixaria, não interessa!

E começaram os encontros. Ofuscados pelo dinheiro da pequena, os dois amigos esqueciam-se de um pequeno detalhe: ou seja, a própria pequena. Tinham, desta, uma ideia vaga, nebulosa. E se lhes pedissem para descrever o feitio do nariz, do queixo, do corpo de Teresinha, não saberiam fazê-lo. Ignoravam, honestamente, se era bonita, feia ou simpática.

Noivos

Num instante, a menina meteu o namorado dentro de casa. Asdrúbal conheceu o pai, mãe, irmãs e tias. Jantou lá, e suou frio quando serviram o peixe. Não sabia direito qual o garfo. Já por ocasião da sopa, recebeu um impacto tremendo, pois a moça soprou-lhe: “Faz menos barulho.” Saiu humilhado e, ao mesmo tempo, mais preso do que nunca àquela família. E, pouco a pouco, foi contando à menina as suas dificuldades e, sobretudo, as desconsiderações que sofria no emprego. Aliás, o amigo o industriara: “Conta miséria, rapaz.” E o Asdrúbal, segurando a mão da pequena, gemia: “O Chefe tomou assinatura comigo.” Ela, que o considerava um anjo, espantava-se:

– Mas por quê?

– Porque não sou puxa como os outros. Digo o que tenho de dizer e pronto. Teresinha, solidária, reforçava:

– Faz bem, se ele se fizer de besta, mete-lhe a mão na cara.

– E o emprego?

– Por minha conta — e acrescentou: — Fome você não passa. Raimundo, quando soube da conversa, inflamou-se:

– Ótimo! Se ela garante o negócio, nem se discute.

O fato é que Asdrúbal passou a ser outro, no escritório. Ele que sempre se caracterizara pela subserviência mais deslavada, pela humildade mais constrangedora — roncava grosso e já falava em “quebrar caras”. Um dia, o chefe soube que ele não saía do telefone e o convocou para o competente sabão:

– Que negócio é esse que andam me contando? O senhor pensa que isso aqui é a casa da mãe Joana? Não, senhor, absolutamente!

A princípio, por uma questão de hábito, Asdrúbal ouviu, só, calado. Mas lembrou-se de que o dinheiro do sogro cobria a retaguarda. Num instante, estava de dedo espetado na cara do chefe: “Seu palhaço! Vem cá para fora, que eu te parto a cara. Cretino!” O chefe, lívido, numa crise de pânico, escondia-se detrás dos móveis e punha a boca no mundo. Tiveram que arrastar Asdrúbal, arrastá-lo, aos apelos de “não faça isso”. Nos corredores, ele ainda esbravejava: “Eu sou é homem!” Da rua telefonou para a pequena, ainda heroico; terminou com a insinuação: “Estou sem emprego e imagina o ‘abacaxi’, devo três meses do quarto!”

O lar

O sogro deu-lhe emprego, na firma. Raimundo, animado com o exemplo, brigou no emprego, disse uns desaforos ao patrão. Mas este corpulento e feroz, correu com ele a taponas. Desempregado, o rapaz passou a viver às custas do Asdrúbal. Mordia- o, diariamente, em dez, vinte cruzeiros; e estava sempre reclamando: “Vê se te casas e me arranja o tal emprego.” Meses depois, casava-se Asdrúbal. E parte para a lua de mel. No último momento, Raimundo fez-lhe um substancial pedido de dinheiro: quinhentos cruzeiros. O sogro fez a advertência: “Trata bem minha filha, rapaz, que tu estás feito.” Durou trinta dias a lua de mel e quando voltou, Asdrúbal parecia espantado. Começava a conhecer verdadeiramente a mulher. Até então, ele, na embriaguez do casamento rico, não tomara conhecimento dos defeitos e qualidades físicas e morais de Teresinha. A experiência conjugal abria-lhe os olhos. Descobria, antes de mais nada, que ela era somítica, demais. Tomava conta do dinheiro, regateava até o último tostão, examinava todas as contas. Sempre que, numa boate ele se permitia uma gorjeta muito alta, ela o imprensava: “Parece, até, que o dinheiro é teu. Calma, calma no Brasil!” E, não raro, o advertia antes: “Cuidado que meu pai custou muito a ganhar esse dinheiro!” Voltaram, da montanha, para morar num palacete, na Gávea. Vamos e venhamos: não lhe faltava nada. Casa de luxo, automóvel, piscina de mármore, garçom, o diabo. E, na rua, os lotações do sogro continuavam atropelando pedestres. E conseguiu, mesmo, um emprego de contínuo, para o Raimundo, na firma. Mas ao chegar de fora, teve uma surpresa: todas as criadas, de sua casa, eram pretas. Veio perguntar à mulher:

– Que negócio é esse?

E ela, categórica:

– Claro, ora essa! Ou você pensa que eu sou alguma boba? Pois sim! Criada branca não me entra aqui!

– Mas, criatura!

– Sim, senhor! Só preta e olhe lá! Não acredito em homem nenhum! Eu que ponha criada bonitinha aqui, para ver o que acontece!

A rainha de Sabá

Entre as cinco ou seis empregadas, havia uma, Mariana, que se destacava das demais. Quando Teresinha a viu teve um muxoxo: “Hum! Hum!” Mas deixou-se convencer pela cor. Porque a menina, com seus 19 anos, era uma figura singular. No carnaval anterior, saíra de rainha de Sabá num rancho, com espetacular sucesso. E Teresinha dizia para as visitas: “Tem bom corpo, mas é preta!” Mergulhado, até o pescoço, na nova vida, Asdrúbal procurava Raimundo. Parecia meio descontente; suspirava: “Não sei o que há comigo.” Raimundo, que era agora contínuo e de uniforme, fazia uma síntese:

– Vida chata, meu Deus do céu!

De vez em quando, ele ia à casa do amigo, levar encomendas. Um dia, chamou Asdrúbal, a um canto: “Tens, em casa, um material de primeira.” Espanto de Asdrúbal: “Quem?” E o outro: “A Mariana.” Asdrúbal fez a restrição racial: “Mas é preta!” Raimundo saltou:

– Deixa de ser burro! Pode ser preta, mas que perfil. E o corpo, menino!

A verdade é que, Raimundo, inferiorizado dentro do uniforme de contínuo, tomava-se de ódio contra Teresinha. Em casa, na cama, devorado pelos percevejos, ele ruminava: “Vou fazer a caveira dessa gaja!” Não sabia como, mas… Sempre que podia, interpelava Asdrúbal: “Como vai a rainha de Sabá? Ah, se eu fosse você!” E Asdrúbal cruzando com Mariana, no corredor, já a olhava de uma certa maneira. O amigo o sugestionava: “Deixa de preconceito besta!”

O cheque

No dia em que Asdrúbal fez 35 anos, a mulher preparou um grande jantar, com a presença de muitos parentes, inclusive dos pais. Quando todos se sentaram à mesa o Asdrúbal apanhou o guardanapo e um papel caiu no chão. Surpreso, curvou-se e apanhou. Era um cheque de quinhentos mil cruzeiros! Enquanto ele, vermelhíssimo, relia a importância, os parentes batiam palmas e o sogro anunciava:

– Para uma viagem a Paris e outros bichos!

Teresinha ergueu-se e veio beijá-lo na testa. Então, aconteceu o seguinte. De pé, à cabeceira da mesa, o rapaz olhou ainda uma vez o papel e, sem exaltação, com método, o rasgou, em não sei quantos pedacinhos. Houve alarido na sala. Que é isso? Está louco? Bêbado? Mas todos emudeceram quando ele, em voz forte e nítida, anunciou:

– Comunico que vou me desquitar de minha mulher, aqui presente. E que me casarei com minha criada, Mariana, no México, no Uruguai ou no raio que o parta.

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