Quase não há cidade velha do Brasil que não guarde a tradição de algum carro velho — sege, cabriolé ou traquitana — a rodar pelas ruas mal empedradas no silêncio das meias-noites. O povo diz que é carro de alma penada. Em certa cidade do sul de Pernambuco, a gente mais antiga ainda hoje fala de um coche com penachos como carro de defunto que uma vez por outra, tarde da noite, se lança de repente num despenhadeiro entre gritos e lamentações do cocheiro e dos passageiros, numa língua arrevesada. Diz-se que a língua é a dos hereges holandeses que andaram por aqueles sítios no século XVII.
No Recife, ilustre advogado dos primeiros tempos da República morou, quando moço, numa casa perto da célebre avenida Malaquias. Em redor da casa, nas noites mais feias, rodava um carro de cavalo que assombrava, com seu ruído, as pessoas da casa. Ruído de patas de cavalo, de rodas de carro e até de vozes. Voz áspera de boleeiro. Vozes doces de gente sinhá, afobada de seu, dentro do carro. Abria-se uma porta ou janela da casa: talvez fosse troça de estudantes boêmios que se divertissem com atrizes, entrando de carro num sítio particular. Estudante era antigamente capaz de tudo. Não se avistava, porém, carruagem nenhuma. Apenas paravam as vozes. O barulho das rodas do carro continuava sobre a areia frouxa, sobre as pedras, sobre a grama do quintal. Mas ninguém avistava carro ou enxergava cavalo ou descobria sinal de roda na terra mais mole.
Também pelas ruas do centro da cidade houve tempo em que à meia-noite se ouvia o rodar de enorme carro de cavalo. Devia ser carro velho porque as rodas rangiam de cansadas. Tinha o rodar do carro alguma coisa de gemido de carro de boi. Houve quem, abrindo de repente o postigo, visse imenso coche fúnebre cheio de penachos e dourados, os cavalos cobertos de crepe. Carro igual, igualzinho, ao coche que há anos levara ao cemitério de Santo Amaro certo titular do Império. Misterioso, o carro preto e dourado aparecia e desaparecia com todos os penachos e cavalos de luxo. Todo ele parecia penar. Corria entre os recifenses da época que o tal titular vendera a alma ao Diabo.
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