Túmulo sem nome – Conto de Nelson Rodrigues

By | 12/07/2022

Doutrinava a pequena:

– Meu anjo, sabe qual é a coisa mais cretina do mundo? E ela:

– Qual?

– O ciúme.

– Por quê?

Andando de um lado para outro, metido no seu inevitável e imaculado terno branco, ele continuava:

– Porque sim! Ciúme é uma estupidez do tamanho de um bonde, percebeste? E vem cá: o que é o amor, bolas? É um problema de confiança. Muito bem. Das duas, uma: ou o marido tem confiança na mulher e a mulher no marido ou devem ambos plantar batatas!

Norma arregalava-se toda:

– Que teoria!

E ele, na sua convicção profunda:

– Mas, evidente! Natural!

O bonitão

Namoravam-se há oito meses. E quando Norma foi beijada na boca, pela primeira vez, teve uma tal comoção que, no dia seguinte, apareceu com urticária. Ela amava Jubileu com o desespero, o fanatismo, de um primeiro amor. De resto, era um belo rapaz, forte, espadaúdo, de olhos verdes e dentes perfeitos. Além do mais impressionava por uma particularidade muito interessante: a obstinação com que usava ternos brancos; e só ternos brancos, fizesse chuva ou sol. Essa predileção por uma cor, em detrimento das outras, dava o que pensar. Muitos aventuravam a blague: “Lá vem Fulano vestido de noiva!?” Outros indagavam: “Vais fazer a primeira comunhão?” Jubileu não ligava; ria também, e continuava exibindo os ternos brancos mais bem-passados do Rio de Janeiro. Parecia gostar de Norma e já prometera:

– Aguenta a mão que eu fico noivo quando arranjar emprego!

Desempregado

O emprego de Jubileu! Com seus 28 anos bem-contados, não se lhe conhecia uma ocupação passada, presente ou futura. Era o que se pode chamar um desempregado nato e talvez hereditário. Essa condição de vadio devia comprometê-lo aos olhos, pelo menos, das famílias. Mas não. No limiar dos trinta anos, já namorara a metade do Rio de Janeiro e sempre fora tratado na palma das mãos, pelas mães e pelos pais mais severos. Baseado na própria experiência, Jubileu piscava o olho para os amigos: “Esse negócio de não trabalhar dá cartaz!” De todas as pequenas, a primeira que estranhou esse total desemprego foi Norma. Meio sem jeito, sugere:

– Você precisa arranjar trabalho, meu filho!

No momento, Jubileu estava limpando as unhas com um pau de fósforo. Ergueu o rosto, encarou-a:

– Estou agindo, estou agindo!

E mais não disse. Fosse como fosse, Norma deu-se por satisfeita. Daí a dois dias coincidiu que o pai da pequena, velho ranheta, fizesse um comício, dentro de casa, contra a ociosidade do futuro genro. Com carradas de razão, ele queria saber, em síntese: como é que, sem emprego, Jubileu podia ter uma impressionante coleção de ternos brancos? Como podia pagar a lavagem dos referidos ternos? A própria Norma embatucou. Engolindo em seco, desculpou o namorado como pôde:

– Está procurando emprego! Está agindo!

Cínico

Mais 24 horas e Jubileu aparece, radiante: “Meu anjo, parece que a pátria está salva!” Senta-se ao lado da pequena, na sala de visitas, acende um cigarro e começa:

– Eu sempre te disse, não foi? Que ciúme é bobagem, estupidez e outros bichos?

– Disse.

Jubileu baixa a voz e desenvolve o tema: “Quando eu digo ciúme, quero dizer também fidelidade.” Pausa. Norma esbugalha os olhos: “Como?” Ele trata de escolher as palavras:

– É o seguinte: fidelidade não deve ser uma obrigação. Compreendeu? — e repete: — Se a fidelidade passa a ser uma obrigação, deixa de ter graça, evidente. É ou não é?

A pequena ergueu-se, em câmara lenta, estupefata. “Você quer dizer o quê? Que eu posso ser infiel? É isso?” Impressionado com a reação da garota, Jubileu teve medo e, claro, efetuou uma fulminante marcha a ré. Pigarreia e nega, cinicamente:

– Você interpretou mal. E que ideia faz você de mim, carambolas? Ela senta-se de novo, abana-se:

– Puxa! Que susto você me deu!

Então, para debilitar a pequena, começa: põe-lhe a mão em cima do joelho e vai subindo, por debaixo do vestido.

Miserando

Finalmente, Jubileu conta, por alto, um fabuloso negócio que significava, nada mais, nada menos, que a “salvação da pátria”. Insiste, esfregando as mãos:

– Saindo esse negócio, a gente podia casar amanhã mesmo! Norma pula:

– Opa!

Jubileu levantou-se, deu-lhe as mais solenes garantias: “Mobília de quarto, sala, tudo!” Então, na sua impressão profunda, a menina quis saber que prodigioso negócio era este, em que consistia e o que era preciso fazer. Jubileu vacila. Larga o cigarro no chão, pisa a brasa e conclui, coçando a cabeça:

– Depois te conto. Basta que saibas o seguinte: espero ganhar nunca menos de cem contos!

Os cem contos

Nessa noite, Norma não dormiu direito, com a cabeça cheia de contos. E vamos e venhamos, a quantia era realmente deslumbrante — cem mil cruzeiros! Nos dias seguintes, não deixou o noivo em paz: “E o tal negócio? Como é? Sai ou não sai?” Ele achou que era mais tático despistar, fazer mistério: “Ainda não está na hora! Eu te aviso!” A pequena, que era curiosa por natureza, fazia mil e uma especulações: “Que será, meu Deus?” Aquilo já a estava pondo doente. Uma noite, agarrou o namorado: “Conta, conta!” Jubileu tem um derradeiro escrúpulo: “Não sei se devo…” Norma, já nervosa, ameaça: “Zango contigo!” Ele suspira:

– Bem. Pra início de conversa, é um negócio que depende de ti, exclusivamente de ti.

Empalideceu:

– De mim? Como? E por quê? E ele:

– Tu conheces o Sampaio, não conhece?

Fez que sim, com a cabeça. Então, Jubileu diz, textualmente, que o Sampaio era “tarado” por ela. Com o lábio inferior tremendo, a garota indaga: “E que mais?” O noivo prosseguia, gaguejante, atropelando as palavras. Rico, podre de rico, e cheio do burro do dinheiro, o Sampaio estava disposto a pagar caro, caríssimo um “capricho”. Norma perguntava: “Qual?” Jubileu já não sabe se deve prosseguir ou parar. Há uma pausa incômoda e interminável. É instigado: “Acaba!” Jubileu ergue- se. Com as duas mãos enfiadas nos bolsos, anda de um lado para outro. Finalmente, estaca diante da pequena:

– O Sampaio propôs o seguinte, vê só: na véspera do nosso casamento, tu dás um passeio com ele, de automóvel. Por esse passeio, ele paga cem mil cruzeiros! Na bucha!

Novo silêncio. Norma aperta a cabeça entre as mãos, fechando os olhos. Tenta assimilar o fato. Abre os olhos, emenda as perguntas: “Passeio como? Sozinha? E só passeio? Responde, é apenas passeio?” Acuado, Jubileu explode: “Sei lá! Isso é com ele!” E, súbito, agarra-se à pequena: “Compreendeste o golpe?” Ela não diz nada, e Jubileu continua:

– Olha, que cem contos não são cem mil réis! Com essa gaita, nós vamos tirar o pé da lama. Tu podes comprar as duas mobílias, televisão, enceradeira, aspirador de pó, o diabo! O negócio é toma lá, dá cá!

Reação

Norma levanta-se, branca. E receia diante do namorado. Na sua violência contida, aponta: “Saia, já! Saia!” Desconcertado Jubileu gagueja: “Mas que é isso? Calma!” Quer tocá-la, mas a garota se crispa, rente à parede:

– Cachorro! Seu cachorro!

Apavorado, o rapaz, no seu terno branco, baixa a cabeça e sai. Imediatamente, Norma reúne toda a família e foi lacônica, definitiva: “Desmanchei tudo!” Tremia, ao dizer isso, torturada de febre. Os pais, que não gostavam do pretendente, entreolharam-se, sem comentário. E, então, com os braços cruzados, atormentada de arrepios, a menina recolheu-se. Era jeitosa de corpo e de rosto, doce de coração e ainda nova. Teria, se quisesse, a seus pés, partidos bem melhores e mais honestos. Não quis, porém. Olhava o caso de Jubileu como um fim de mundo. Dir-se-ia que a infâmia de um único homem implicava todos os demais. Passou a noite em claro, dizendo, de si para si, num ódio indiscriminado: “São uns bandidos!” E não resta dúvida que a febre alimentava seu desespero. Quase ao amanhecer, quando já sumia a última estreia da noite, Norma escreveu, a lápis, na parede: “Os homens não gostam de mulher fiel.” E foi só. Mas quando a criada acordou e passava pelo corredor, viu, ao fundo, o vulto suspenso. Certa de que nenhum homem lhe daria o direito de ser fiel — enforcou-se a pequena. No seio, encontraram um bilhete, onde a suicida pedia que não pusessem nome no seu túmulo.

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