Um miserável – Conto de Nelson Rodrigues

By | 30/06/2022

Apanhou uma gripe danada. Contorcia-se nos acessos de tosse. E ela própria chamava o marido:

– Vem cá, Belmiro, vem cá.

Ele largava o jornal e vinha. A mulher perguntava:

– Escuta só.

E, de fato, os brônquios de Zuleika só faltavam assoviar. Ela própria, no fim de cada crise, gemia:

– Acho que apanhei algum golpe de ar.

E Belmiro:

– Vou te levar ao médico.

– Médico pra quê, homem de Deus? Sossega!

Tinha pavor dos médicos; acusava-os de exploradores e dizia a todo o mundo: “O meu dinheiro é que eles não levam!” Argumentava, fazia contas; o Belmiro ganhava pouco, uma miséria; e o dinheiro que ela fazia, com costura, não dava para nada. Discutia com o marido e era irredutível:

– Imagine se a gente for gastar dinheiro com médico e remédios.

Mas a gripe não a largava. Estava com febre há uma porção de dias, a respiração curta e suores frios noturnos. O pior de tudo, porém, era a tosse, que estalava os pulmões e a asfixiava. Parecia até coqueluche. Tentou um xarope, que lhe recomendaram. Não sentiu, porém, melhora nenhuma. De noite, acordava, sentava- se na cama para tossir. No seu desespero, chorava:

– Eu morro, meu Deus do céu! Morro!

O pulmão

Houve quem sugerisse:

– Por que a senhora não tira uma radiografia?

– E o dinheiro, criatura?

– Tire daquela pequenininha!

Zuleika era teimosa, sempre fora teimosa. Preferia morrer a entregar os pontos. Mas uma noite, depois de um acesso feroz, sentiu gosto de sangue na boca. Numa desconfiança, acendeu a luz, passou a língua no lençol e viu — a saliva rósea no pano. Ela, que fingia não dar importância à doença, taxando-a de “resfriado bobo”, tomou-se de um medo súbito e selvagem. Lembrou-se de uma tia, irmã de sua mãe, que morrera doente do peito, em Campos do Jordão. Sacudiu o marido, que dormia, ao lado, aos gritos de:

– Sangue! Sangue!

Não dormiu mais, com a ideia fixa da tuberculose. E o gosto de sangue continuava. Já estava de lenço na cama. Qualquer coisinha acendia a luz e encostava a língua no lenço para ver a mancha cor-de-rosa. No dia seguinte, pela manhã, decidiu:

– Vamos ao dr. Borborema, agora mesmo. O marido ainda fez a objeção:

– Ao dr. Borborema? Aquele boboca? Mas ele é um errado, minha filha!

– Outro, não! Quero o dr. Borborema!

Belmiro, enfiando o suspensório, fez o comentário:

– Amarra-se o burro à vontade do dono!

Ora, o dr. Borborema era um velhinho, bastante gagá, e de eficiência ultraproblemática. Não curava ninguém, o diabo do homem; e, a rigor, a sua maior e talvez única virtude consistia nas caronas ou abatimentos que concedia aos clientes menos favorecidos. Dava consultas num consultório, onde a imundície campeava, infrene; dizia-se, até, que fora encontrado, lá, não sei se escorpiões ou lacraias. No caminho, Belmiro ia resmungando:

– Um zebu, esse d. Borborema! E ela pirracenta:

– Deixa, não faz mal!

Dentro do consultório miserável, o velhinho forrava as costas de Zuleika com uma toalha e fazia ausculta. Como um médico do tempo de d. João Charuto, ele, com o ouvido nas costas da cliente, comandou:

– Diga trinta e três. E ela:

– Trinta e três.

– Agora tussa.

Tossiu várias vezes. E a tosse provocada acabou se tornando involuntária e irresistível; contorceu-se, esteve em risco de se asfixiar. Na parede, estava emoldurado o seguinte dístico: “Enquanto no doente há vida, há esperança.” Belmiro, impressionado, perguntou:

– Então, doutor?

O velhinho já estava redigindo a receita, com a sua caneta-tinteiro. Sem deixar de escrever, deu sua opinião:

– Isso passa! Isso passa!

Belmiro, com a pulga atrás da orelha, insistiu:

– Nada no pulmão?

– Nada. E o rapaz:

– O senhor me tirou um peso, doutor!

O médico ainda veio levá-los, até a porta. Além de não cobrar nada ou cobrar pouco, era gentil, educadíssimo. Com uma dentadura dupla, móvel, ele a deslocava continuamente, a título de distração e vício.

A tragédia

Zuleika voltou pior. E agora era ela quem, numa reviravolta inexplicável, malhava o dr. Borborema:

– Um burro! Não entende nada!

– Não foi você que escolheu, ora essa!

E a moça, cravando as unhas, no braço do marido:

– Eu vou morrer, Belmiro, vou morrer!

– Oh, deixa de bobagem! Morrer coisa nenhuma! Parece criança!

Mas ela se entregava, de corpo e alma, à ideia fixa. E isso era mais que um presságio, era uma convicção, uma certeza inapelável. Sentou-se na cadeira de balanço na sala, e lá ficou, horas a fio, numa meditação sem fim. Quando o marido falou em aviar a receita, opôs-se:

– Não quero!

– Não quer por quê? Tem cada uma! Baixou a voz, numa obsessão:

– Porque é atirar dinheiro fora. Eu sei que vou morrer… Belmiro ainda ligou para uma novela, que ambos ouviam. Ela, na sua tristeza de condenada, pensou que não saberia o fim de várias novelas que escutava, em horas diferentes. Nessa noite, não conseguiu dormir. Primeiro, por causa da tosse amaldiçoada; depois, porque queria pensar muito nesse mundo que, em breve, ia deixar. E, na vigília, imaginou várias coisas, inclusive o próprio enterro. Queria que fosse muito bonito, de maneira a impressionar a rua inteira, sobretudo uma vizinha, com quem se indispusera. Pena é que os enterros modernos não fossem como os antigos, em que o carro fúnebre era puxado por cavalos brancos, empenachados. Súbito, ocorreu-lhe o problema: e o dinheiro? Onde, como e quando Belmiro poderia conseguir o dinheiro para um enterro de luxo? Até o sol raiar, ela não pensou senão nos meios, de que ele poderia lançar mão para os funerais. Queria que estes fossem espetaculares e o bastante para humilhar a tal vizinha. E tanto pensou que, descobrindo uma solução, acordou Belmiro. Ele, com um sono danado, virou-se, agressivo, malcriado. Mas quando a ouviu falar em morte controlou-se. Então, doce, persuasiva, Zuleika disse-lhe que queria um enterro bonito. Mas como sabia que ele não tinha dinheiro, ela sugeria que recorresse ao Humberto. O marido pulou, na cama:

– Mas eu nem conheço esse cara! Um sujeito metido a besta, só porque tem dinheiro!

E ela:

– Quando ele souber que é pra mim, que é para meu enterro, te dá, Belmiro, paga tudo! Te juro pela minha salvação!

Só, então, Belmiro teve a suspeita:

– Mas vem cá! Dá dinheiro por quê? Hein? Por quê? O que é que esse palhaço é teu?

Não sei se Zuleika diria ou não. Mas quando ia abrir a boca teve uma violentíssima hemoptise. Diante do sangue, que vinha em golfadas medonhas, dissolveram-se os ciúmes de Belmiro. Ele gritou: acudiram os vizinhos. Deram injeção, cálcio, puseram saco de gelo, mas quem disse que o sangue estancava. Nas hemoptises sucessivas, Zuleika só pensava na vizinha antipática e, mais do que nunca, desejou deslumbrá-la com um grande enterro. Olhava para o marido, como se dissesse: “Quero um enterro de luxo!” Se pudesse falar teria ampliado seu pedido para uma missa de sétimo dia, com violino, canto e não sei quantos coroinhas. Acabou não resistindo; fez um esforço supremo e sussurrou:

– Enterro… bonito… missa, missa e…

Já as suas unhas estavam roxas e este esforço a matou mais depressa. Diante da morte, Belmiro caiu numa crise violentíssima e teve que ser arrastado, à força, do quarto. Meia hora depois, na sala, enquanto, cá no quarto, se vestia a morta — ele pensava em Humberto. Era evidente que… Um vizinho interrompeu o curso de suas reflexões oferecendo-se para tratar do enterro. Sobressaltou-se:

– Obrigado, Fulano! Mas eu mesmo trato disso!

Os funerais

Foi bem estranho o que aconteceu. Humberto, que Belmiro mal conhecia de vista, recebeu-o, com um certo espanto e, pelo que o outro pôde deduzir, com um certo pânico. Ao receber, porém, a notícia da morte de Zuleika, teve, ali mesmo, na frente do marido espantado, quase que uma crise de loucura. E dizia, por entre os soluços:

– Coitadinha! Coitadinha!

Ainda chorava, quando soube dos últimos desejos da morta: o enterro caro e a missa.

Declarou que fazia questão de arcar com todas as despesas. Belmiro, com um máximo de discrição, disse:

– Vou saber quanto é. E volto já.

Na Santa Casa, a seu pedido, deram-lhe o orçamento de dois enterros: o mais caro e o mais barato. O primeiro perfazia um total de cinquenta contos. Belmiro encomendou o mais barato, com espanto do agente funerário. Voltou ao escritório do Humberto, de quem recebeu os cinquenta contos e mais algum para a compra de uma coroa monumental.

No dia seguinte, pela manhã, saía, da casa de Belmiro, o coche fúnebre quase de indigente. A vizinha, que não se dava com Zuleika, estava na janela, quando passou o enterro. Na volta do cemitério, o viúvo já pensava na missa. Felizmente, Humberto não aparecera, por naturais escrúpulos. E assim, Belmiro pôde procurá-lo, dias após, no escritório. Trouxe dinheiro para uma missa com três padres, dez coroinhas, canto, violino, etc., etc.

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