Uma senhora honesta – Conto de Nelson Rodrigues

Era muito virtuosa e, mais do que isso, tinha orgulho, tinha vaidade dessa virtude. Casada há seis meses com Valverde (Márcio Valverde), ouvia muita novela de rádio. E se, por coincidência, a heroína da novela prevaricava, ela não podia conter sua indignação. Dizia logo:

— Esse negócio de trair o marido não é comigo!

Fazia uma pausa rancorosa. E concluía:

— Acho muito feio!

Vigiava as colegas, as vizinhas, sobretudo as casadas. Quando surpreendia um olhar suspeito, um sorriso duvidoso, vinha para casa em brasas. Perdia a compostura:

— Fulana devia ter mais vergonha naquela cara! Então isso é papel? Uma mulher casada, com filhos! E até me admira!

Durante horas, não falava noutra coisa. Na sua irritação, acabava implicando com o marido. Valverde, metido num pijama listrado, tremia diante dessa virtude agressiva e esbravejante. Refugiava-se detrás da última edição, como se fosse uma barricada; ciciava:

— Fala baixo, Luci! Fala baixo!

— Fala baixo por quê? Ora, essa é muito boa! Afinal, estou ou não estou na minha casa?

— A vizinhança pode ouvir.

— Bolas pra você! Bolas pra vizinhança!

Valverde sofria de asma. Bastava o tempo esfriar um pouquinho; a umidade era um veneno para ele. E, então, passava mal, tudo quanto era brônquio chiava e o acometia o pavor da asfixia iminente. Sendo tímido, talvez a timidez decorresse de sua condição melancólica de asmático. Mirrado, com um peito de criança, uns bracinhos finos e longos de Olívia Palito — o pobre-diabo não tinha a base física da coragem. Por vezes, nas suas meditações, imaginava a hipótese de uma luta corporal entre ele e a esposa. Embora mulher, Luci era bem mais alentada. E não há dúvida de que levaria vantagem esmagadora. A superioridade da moça, porém, não era apenas física. Não. O que a tornava intolerável e agressiva era justamente a virtude que a encouraçava. Como se sentia uma esposa corretíssima, acima de qualquer suspeita, vivia esfregando na cara do marido essa fidelidade. Não passava um santo dia que não alegasse:

— Mulher igual a mim pode haver! Mais séria, não! E duvido!

— Eu disse o contrário, disse?

— Não disse, mas insinuou!

— Oh, Luci!

Ela espetava o dedo no peito magro do marido; e explodia:

— Os homens são muito burros! Não sabem dar valor a uma mulher honesta. Só te digo uma coisa: devias dar graças a Deus de teres uma esposa como eu!

Não há dúvida: ela o tratava mal, muito mal mesmo; desacatava-o, inclusive na frente de visitas. Justificava-se, porém:

— Não sou de muito chamego, de muito agarramento, mesmo porque tudo isso é bobagem. Mas nunca te traí. Compreendeste?

O TROTE

Era funcionária pública, já que o marido ganhava pouco. Ia para a repartição cedinho. Para evitar equívocos, amarrava a cara. Andar de cara amarrada era uma de suas normas de mulher séria. Fosse por essa ferocidade fisionômica ou por outro motivo qualquer, não tinha maiores aborrecimentos na rua. E não que fosse feia. Podia não ser bonita, mas era cheia de corpo. E há, indubitavelmente há, conquistadores que se especializam em senhoras robustas. Por outro lado, enfurecia-se contra um simples olhar. Certa vez, no ônibus, um senhor de meia-idade, que ia no banco da frente, virouse umas duas ou três vezes durante os quarenta minutos da viagem. Luci perguntou, então, bem alto, para que todos ouvissem:

— Nunca me viu, não?

O cavalheiro, com as orelhas em fogo, só faltou se afundar no banco. Uns rapazolas sem compostura riram. E quando Luci chegou na repartição esbravejava:

— A gente encontra cada sem-vergonha que só dando com a bolsa na cara!

Não saberia viver sem essa honestidade profunda. Um dia a vizinha veio bater na porta:

— Dona Luci! Dona Luci!

Apareceu, de quimono. Era o telefone. Admirou-se:

— Pra mim?

Foi atender assim mesmo. Era uma voz de homem; disse mais ou menos o seguinte:

— Aqui fala um seu admirador.

Antes da indignação, houve o pasmo:

— Como?

— Tenho pela senhora uma grande simpatia.

Era demais! Apesar de estar na casa dos outros, ou por isso mesmo, fez tremendo escândalo:

— Olha, seu cachorro, seu sem-vergonha! Eu não sou, ouviu?, quem você está pensando! E fique sabendo que meu marido é bastante homem para lhe partir a cara! O anônimo, do outro lado, não perdeu a calma. Eliminou o tratamento de senhora e declarou simplesmente o seguinte, fazendo uso de expressões as mais desagradáveis e chulas:

— Tu deixa de ser besta, porque tudo isso é conversa fiada etc. etc. etc.

O EXPLORADOR

A família do vizinho, maravilhada, regalava-se com tamanha virtude. Luci voltou para casa transpirando, mas na euforia de sua fidelidade. Nunca, como durante o telefonema, sentira tão inequivocamente a sua condição de senhora honesta. De noite, quando o marido chegou, contou-lhe tudo. Valverde estava constipado, no pânico da asma. Ouviu, sem um comentário. Luci soltou a bomba, afinal:

— Desconfio de um cara.

— Quem?

— Primeiro, vou apurar direitinho. Mas se for quem suponho, vou te pedir um
favor.

— Qual?

E ela:

— Você vai me dar um tiro nesse camarada!

— Eu? Logo eu?! Tem dó!

— Porque, se você não der o tiro, te garanto que eu dou!

Sim, ela desconfiava de alguém. Há seis meses que, ao sair de manhã e ao voltar de tarde, um vizinho vinha para a janela assistir à sua partida e à sua chegada. Ora, desde que se capacitara da própria honestidade, um simples olhar bastava para a conspurcar. Ela própria sustentava a teoria de que nada é tão imoral no homem quanto o olhar. E o vizinho em apreço, sem dizer uma palavra, sem esboçar um sorriso, dardejava sobre ela os olhares mais atentatórios. A coisa era de tal forma tenaz, obstinada e impudica que Luci acabou pedindo informações sobre o camarada. Soube de coisas incríveis, inclusive uma que a arrepiou: embora moço (teria seus trinta e poucos anos) vivia às custas de uma velha rica. Sofria desfeitas, humilhações da megera que chorava cada tostão. Mas o rapaz, com um estoicismo e um descaro impressionante, suportava tudo, para não morrer de fome. E Luci, apesar de achar feio, horrível, esse negócio de homem sustentado por mulher, teve uma pena relativa das desconsiderações
infligidas ao sem-vergonha.

Reagiu, porém, contra essa debilidade sentimental porque, enfim, o rapaz estava nutrindo a seu respeito intenções desonestas, embora não expressas. Posteriormente, soube do nome do conquistador: Adriano. Era, como se vê, nome de vinho e, ao mesmo tempo, nome de fogos de são João. À noite, antes de dormir, e já na espessa camisola, fazia comentários enigmáticos, cujo sentido Valverde não captava:

— Hoje em dia os homens não respeitam nem mulher casada!

Dizia isso diante do espelho, repassando no rosto um remédio para espinha que lhe tinham recomendado. O marido, quieto e esquálido na cama, no pavor permanente da asma, olhava de esguelha para a mulher. E calado fazia suas reflexões. Tinha um amigo que era traído da maneira mais miserável. Apesar disso ou por isso mesmo a mulher o tratava como a um príncipe. E sempre que voltava de uma entrevista com o outro trazia para o esposo uma lembrancinha. Valverde quase invejava o colega. Ainda diante do espelho, Luci prosseguia, indireta e sutil:

— Mas comigo estão muito enganados! Eu não sou dessas! Calava-se, porque, evidentemente, não podia pôr o marido a par de suas atribulações. No dia seguinte, ao passar, a caminho do ponto de ônibus, lá estava o conquistador de velhas. Foi ilusão de Luci ou ele entreabrira para ela um meio sorriso sintomático? Ficou indignada. Disse, entredentes:

— Que desaforo!

No ônibus, viajou preocupadíssima. Era óbvio que o miserável já não se limitava a uma admiração distante, quase respeitosa. Não. Apertava o cerco. Durante todo o dia, no trabalho, ela se sentiu acuada. O pior foi na volta, à tarde: o fulano estava na calçada, numa camisa esporte, verde-clara, de mangas curtas. Pela primeira vez, Luci constatou que tinha braços fortes e bonitos, o que não era de admirar, dado que, aos domingos, o cínico jogava volibol de praia. Esta exibição deslavada de braços tornava mais patentes do que nunca as intenções de conquista. E só faltava, agora, uma coisa: que o rapaz lhe dirigisse a palavra. Se fizesse isso, Luci seria bastante mulher para lhe quebrar o guardachuva na cara. Finalmente, a moça apanhou uma gripe e resolveu ficar em casa.

ORQUÍDEAS

O marido saiu, muito alegre, dizendo que ia jogar no bicho; sonhara com não sei que animal e planejara o jogo. Muito imaginativa, ela ficou cultivando as piores hipóteses, sobretudo uma particularmente eletrizante: de que o vizinho, aproveitando a ausência de Valverde, invadisse a casa. Podia ter passado a tranca na porta, mas não ousou. Às quatro horas da tarde, explodiu o inconcebível: um mensageiro veio trazer uma caixa de orquídeas. Nenhuma indicação de remetente. Luci tremeu. Pela primeira vez em sua vida, compreendia toda a patética fragilidade do sexo feminino, todo o imenso desamparo da mulher. Diria ao marido? Não, nunca. Valverde, apesar da asma, do peito de menino, podia dar um tiro no casanova. Por outro lado, já admitia que o vizinho nutrisse por ela mais que um simples entusiasmo material. Quem sabe se não seria um amor? Grande, invencível, fatal? De noite, chegou Valverde, eufórico. Ao vêlo, Luci teve um choque como se o visse pela primeira vez: que figurinha lamentável! E não pôde deixar de estabelecer o contraste entre os bracinhos do marido e os do “outro”. Valverde quis beijá-la; ela fugiu com o rosto, azeda:

— Sossega!

O pobre esfregou as mãos:

— Ganhei no bicho!

Ela, nem confiança. Ligou o rádio; mas o seu pensamento estava cheio de orquídeas. De repente, Valverde, que fora lá dentro, reapareceu de calça de pijama e a camisa rubro-negra, sem mangas, que usava na intimidade. Fez, então, a pergunta:

— Recebeste as flores?

— Que flores?

— Que eu mandei?

Empalideceu:

— Ah, foi você?

E ele:

— Claro! Ganhei no bicho e já sabe!

A alma de Luci caiu-lhe aos pés, rolou no chão. Fora de si, não queria se convencer:

— Foi então você? Mas não é possível, não acredito! Onde já se viu marido mandar flores!

Ele, com os bracinhos de fora, os bracinhos de Olívia Palito, insistia que fora ele, sim, e explicou o anonimato das flores como uma piada. Quando Luci se convenceu por fim, deixou-se tomar de fúria. Cresceu para o marido, já acovardado, e o descompôs:

— Seu idiota! Seu cretino! Espirro de gente!

Acabou numa tremenda crise de pranto. Sem compreender, ele pensou na esposa do colega, que era infiel e, ao mesmo tempo, tão cordial com o marido.

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