Vinte e cinco anos de casados – Conto de Nelson Rodrigues

By | 26/04/2022

O amigo foi no escritório buscá-lo:

– Vamos tomar um drinque. E ele:

– Fica para outro dia. Hoje, não posso.

Mas o amigo, que era íntimo, que tinha confiança, fez pé firme:

– Outro dia uma ova! Tem que ser agora! Vamos, põe o paletó, anda!

O dr. Hildegardo pôs o paletó e, tirando os óculos e guardando-os no bolsinho do lenço, foi dizendo:

– Vou chegar tarde em casa! É o diabo!

– Por que, ora essa?

E ele, entrando no elevador:

– Minha mulher não gosta! Minha mulher fica tiririca!

Dirigiram-se para o bar da esquina, sentaram-se lá. Enquanto esperavam o garçom, pensava na mulher, na cozinheira e na filha. Suspirou, feliz quando o garçom os serviu. E, depois de beber um e mais outro, o dr. Hildegardo estalou a língua e, com certa euforia, fez a revelação envaidecida:

– Estou casado há 25 anos. E nunca traí minha mulher.

– Nunca?

Repetiu, já inspirado pelo terceiro drinque:

— Nunca.

O marido fiel

O amigo não acreditou; exaltou-se, até:

– Não existe homem fiel! Nunca existiu!

– Pois eu sou. Fidelíssimo. Te juro, te dou minha palavra de honra. E te digo mais: no fim do mês comemoro minhas bodas de prata. Estás convidado!

– O homem fiel é uma besta! Podia andar de quatro, trotar no meio da rua! Meia hora depois, dr. Hildegardo teve um lampejo, no fundo de sua embriaguez; catou o relógio; espiou os ponteiros: “Oito horas!” Gemeu: “Minha mulher deve estar bufando!” Pagou a despesa, arrastou o amigo: “Vai comigo. Tens que ir! Minha mulher me mata!” O amigo foi, resmungando, mas foi; entraram num táxi e, durante toda a viagem, o assunto pouco variou. Dr. Hildegardo, em pânico, excitava o chofer: “Mete o pé, com apetite!” De repente, bate na testa:

– Vais me fazer um favor, de mãe pra filho.

– Qual? E ele:

– Vais dizer à minha mulher que já jantaste.

– Ué!

Debruçado no ombro do outro, num bafo de bêbado, ia explicando:

– Pelo seguinte: minha mulher não gosta que eu leve ninguém pra jantar. Não topa. Nem ela, nem a cozinheira. Estrilam.

O outro arregalou os olhos:

– Já vi tudo!

O jantar

Entraram em casa, preocupadíssimos. Mesmo o amigo contagiara-se do terror e do sentimento de culpa. D. Odete, assim que viu o marido, nem ligou para o acompanhante. Via-se logo que era uma senhora distintíssima. Dr. Hildegardo estacou; e ela, pondo as mãos nos quadris e depois de olhá-lo do alto a baixo, balançou a cabeça:

– Sim, senhor!

O marido, quase normalizado ao impacto da mulher, arremessou-se. Deu-lhe dois beijos estalados, em cada face. Engrolou uma explicação qualquer relativa a um negócio misterioso e imprevisto. Ela, ressentida, interpelava-o:

– Isso são horas!?

A filha sussurrava para o namorado:

– Papai é um caso sério!

Dr. Hildegardo pendurava-se no ombro da esposa: “Trouxe um amigo, filhinha, mas ele já jantou!” Então, a esposa, satisfeita com o sabão passado no marido, condescendeu em ser apresentada ao amigo que já jantara. A cozinheira, fula, batia com todas as tampas de panela. E d. Odete invocou o testemunho do visitante:

– Imagine o senhor, se é possível! Isso não é hora de jantar! Minha cozinheira fica por conta e com razão, com toda razão!

O amigo, que se chamava Bezerra, com um sono danado de bêbado, rosnou:

– Realmente… Realmente…

Durante o jantar, o dr. Hildegardo fez a corte à mulher, da maneira mais servil e deslavada. Batia nos peitos: “Sou um sujeito de sorte, seu Bezerra! Minha mulher é uma santa!”

Insistiu com o amigo:

– Estás convidado para as bodas de prata!

A serpente

No dia seguinte, o Bezerra compareceu ao escritório do dr. Hildegardo; baixou a voz:

– É sério aquilo que me disseste? É batata? O dr. Hildegardo confirmou, categórico:

– Mas, evidente. E trair minha mulher por quê? A título de quê?

– Realmente, realmente.

Dr. Hildegardo ergueu-se. Ficou andando de um lado para o outro, no gabinete, na comovida emoção de sua felicidade matrimonial:

– Vinte e cinco anos não são 25 dias. O maior golpe que eu dei na minha vida foi o casamento. Um alto negócio! Aquilo já não é esposa, é mãe, é o diabo!

O Bezerra, que estava afundado na poltrona, levantou-se; hesitou, antes de fazer a sugestão:

– Olha aqui; hoje eu vou passear com duas fulanas. Uma é minha, claro; mas a outra não tem companhia. Que tal?

Aproximou-se mais do amigo; segredou, numa tentação: “Material de primeira!” Dr. Hildegardo recuou, como se duvidasse da própria vista e dos próprios ouvidos:

– Mas você tem coragem, Fulano? Conhecendo minha mulher e sabendo que eu, nunca, ouviste, jamais? Você se esquece que no fim do mês comemoro as bodas de prata? Francamente!

O amigo explodiu:

– Deixa de ser besta, Hildegardo, tira o cavalo da chuva! Que é que tem? Todo mundo faz isso! Em matéria de amor, qualquer homem é um canalha!

– Eu, não! Eu, absolutamente! Ora veja! E digo mais: no terreno sexual, só tolero uma posição, a clássica, a tradicional. Sou do “papai-mamãe” rasgado.

O outro, porém, insistiu, numa obstinação quase indecente; seus conselhos tinham o seguinte nível: “Só uma vez, seu imbecil! A pequena é um pirãozinho.” Dr. Hildegardo, já transpirando, resistia: “Não! Nunca!” Novos argumentos e, por fim, a exaltação. O Bezerra segurava, com as duas mãos, e pela gola, o amigo indefeso: “Escuta, ó cara! O sujeito que só conhece uma mulher é um cretino! Tenha vergonha!” Quarenta minutos depois, o derrotado dr. Hildegardo telefonava para casa: “Filhinha, imagina só o abacaxi. Estou tão amolado! Apareceu um negócio importante, de forma que eu não posso jantar…” Quando desligou, virou-se para o amigo, que, do lado, numa satisfação inteiramente gratuita e torva, esfregava as mãos; e disse, com ar de mártir:

– Estás querendo ver minha caveira. No duro que estás!

Desceu o elevador com o amigo, rumo à primeira infidelidade, com o ar típico e insofismável do condenado à morte; gemia: “Estou metendo os pés em 25 anos de felicidade.”

A outra

No dia seguinte, era o próprio dr. Hildegardo quem andava atrás do Bezerra; assim que o encontrou, fez a pergunta sôfrega: “Vamos lá outra vez?” O amigo exigiu um relatório: se tinha gostado; se o material era ou não um grande material; se a fulana era um pirãozinho ou… Dr. Hildegardo, evocativo, maravilhado, dava o seu depoimento autorizado: “É muito liga, sim; uma grande praça.” O outro o catucava:

– Não te disse? Vai por mim, que você vai bem! Aproveita!

Foram lá essa vez e mais outras. De quando em quando tinha crises morais: “Mas não está direito! Eu amo a minha mulher.” Um dia, beberam juntos, dr. Hildegardo e o Bezerra. E este, depois de entornar vários chopes, teve uma sinceridade feroz de ébrio: “Tua mulher é uma jararaca! Um bucho!” Dr. Hildegardo, então, chorou. E houve, na mesa do bar, entre eles, uma polêmica de bêbados. O marido pretendendo que a esposa era uma santa, uma mãe — uma adoração de mulher.

As bodas de prata

Enfim, chegou o dia das bodas de prata. O Bezerra estava lá, firme e grave. Vieram parentes, até, do Norte. O namorado da filha única do casal compareceu, também, de azul-marinho. E, quando não faltava mais ninguém, dr. Hildegardo, no meio da sala, fez um gesto; e pediu: “Silêncio! Silêncio!” Todos se calaram; pensou- se num discurso. E então, o dr. Hildegardo, em voz bem alta e nítida, disse:

– Comunico que, neste momento, deixo esta casa! Silêncio profundo, enquanto cada um dos parentes ia assimilando o fato. A primeira a reagir foi d. Odete: caiu dura. Houve um tumulto, na casa toda. As hipóteses estavam no ar, vivas: Loucura? Embriaguez? Pilhéria? Mas já o dr. Hildegardo, seguido do triunfante Bezerra, varava a muralha dos convidados, a caminho da porta, atropelando as senhoras enchapeladas. A filha tinha um desmaio. E o futuro genro se arremessava no encalço do sogro. Na calçada, o rapaz o alcançou; balbuciou a pergunta: “Mas que foi que houve? Não faça isso!” Então, o dr. Hildegardo abriu-se:

– O que houve foi o seguinte: há 25 anos que minha mulher me faz de palhaço!

E chega! Uma chata!

– Mas sua filha?

Dr. Hildegardo, que já ia mais adiante, estacou: “Ah, sim, a filha!” Veio ao encontro do genro:

– Queres um conselho, rapaz? Manda a minha filha passear. Puxou ao gênio da mãe, imagina! Vai no meu golpe; deixa de ser burro! Chuta a minha filha!

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