A Dança da Maça – Crônica de Luis Fernando Veríssimo

Antônio chegou na hora marcada. Ainda tinha a chave do apartamento, mas preferiu bater. Luiza abriu a porta. Os dois se cumprimentaram secamente.

– Oi.

– Oi.

Antônio fez um gesto indicando os dois homens que estavam com ele. Um senhor e um mais moço.

– Este é o seu Molina e este… Como é seu nome mesmo?

– Arlei disse o mais moço.

– Arlei. Eles vieram me ajudar com a mudança.

– Bom dia ― disse Luiza. ― Já está tudo mais ou menos separado.

Algumas caixas de papelão e sacolas de plástico, uma lâmpada articulada de mesa de desenho, a mesa de desenho desmontada, uma taça de metal. Tudo junto perto da porta.

– Eu resolvi levar a poltrona ― disse Antônio.

– Tudo bem ― disse Luiza.

– É isso aí, pessoal ― disse Antônio, abrindo os braços para mostrar o que seria levado. Isto, e aquela poltrona ali.

Seu Molina estava examinando a taça.

– É para o casal ― disse.

A inscrição na taça era “Campeões do Declaton dos Casais, Hotel das Flores, 1992

– Antônio e Luiza”. O Declaton dos Casais incluía corrida do saco, corrida de pedalinho no lago do hotel e a dança da maçã. Uma maçã era colocada entre os joelhos do casal e eles tinham de fazê-la chegar à boca sem usar as mãos.

– Eu não quero a taça ― disse Luiza.

– Eu também não ― disse Antônio.

– 1992… disse o seu Molina. ― Era a lua-de-mel?

Luiza e Antônio se entreolharam, mas só por um segundo.

– Mais ou menos ― disse Antônio.

– Quem diria, não é? ― disse o seu Molina.

– O quê?

– Em 1992. Que ia acabar assim.

Antônio não podia dizer para o seu Molina não se meter na vida deles. Afinal, era um senhor. Pediu para o Arlei:

– Vamos começar?

Mas o Arlei estava mostrando um álbum que tirara de uma das sacolas de plástico.

– Álbum de fotografia. Vai também?

– Vai ― disse Luiza. Tudo que está nas sacolas vai embora. Arlei estava olhando o álbum. Mostrou para o seu Molina:

– Olha os dois na praia.

E fez um aceno de cabeça para Luiza, com as pontas da boca puxadas para baixo, querendo dizer “Sim senhora, hein?”, e que a Luiza de biquíni não era de se jogar fora. Mas o seu Molina estava sério, olhando para Luiza.

– Você não quer ficar com o álbum? Luiza perdeu a paciência.

– Não quero ficar com nada disto, entende? O que está nas caixas e nos sacos, é para ir embora. São dele.

– Podemos começar? ― pediu Antônio.

Arlei estava examinando os CDs dentro de outra sacola.

– A divisão dos CDs… ― disse. ― Foi de comum acordo ou…

– Eu fiquei só com os que já eram meus.

– Você não quer examinar?

A pergunta de Arlei era para Antônio.

– Não. Isso tudo já estava combinado ― respondeu Antônio. E, pegando uma das sacolas do chão para dar o exemplo, pediu. Vamos começar a levar para o caminhão?

Mas Arlei continuava a examinar os CDs e seu Molina continuava com a taça nas mãos.

– E a taça? ― perguntou o seu Molina.

– O senhor quer ficar com ela? Pode ficar.

– Foi vocês que ganharam ― disse o seu Molina. E depois: ― O que era o Declaton dos Casais?

– Tinha de tudo. Corrida de saco, corrida de pedalinhos, dança da maçã… Seu Molina e Arlei, um uníssono:

– Dança da maçã?

– É. Colocaram uma maçã entre as pernas de cada casal, na altura dos joelhos, e ganhava quem conseguisse que a maçã chegasse na boca, para ser mordida, sem usar as mãos. Lembra, Lu?

Luiza então estava sorrindo com a lembrança.

– É. A gente tinha de se contorcer toda, para fazer a maçã andar. Quem deixasse cair no chão, perdia.

– E vocês conseguiram morder a maçã?

– Conseguimos. Não foi fácil, mas conseguimos.

– Lembra do casal cearense, Lu?

– Lembro! Ela foi ajudar com o joelho e acabou acertando o marido bem no… Bem ali.

– E ele saiu pulando e gritando “Mulher, não maltrate o que é seu!” Os dois deram risadas, depois Antônio ficou sério e disse:

– Bom, mas chega de lembranças. Vamos fazer essa mudança. Se o senhor quiser pode ficar com a taça, seu Molina.

– Eu não. Uma lembrança destas, de um tempo tão alegre… Nenhum de vocês quer
ficar com ela, mesmo?

– Está bem, eu fico.

Antônio e Luiza tinham falado ao mesmo tempo. E se corrigiram ao mesmo tempo:

– Fica você.

– Fica você.

Seu Molina perguntou:

– Vocês têm certeza que não querem pensar mais um pouquinho sobre isto?

– Sobre a taça?

– Sobre a separação. Só mais alguns dias. Depois nos chamem para fazer a mudança. Ou não nos chamem.

Arlei sacudiu a sacola com os CDs e acrescentou:

– Assim vocês têm mais tempo para pensar na divisão dos CDs. Na minha experiência, a divisão dos CDs é sempre o que dá mais problemas, depois.

Luiza e Antônio estavam se olhando.

– O que você acha? ― perguntou Luiza.

– Não sei… ― disse Antônio.

Seu Molina e Arlei saíram e fecharam a porta em silêncio e deixaram os dois conversando.

Naquela noite, depois do amor, Luiza perguntou a Antônio de onde tinha saído aqueles dois, Arlei e seu Molina, e Antônio respondeu que os escolhera ao acaso, na rua. Eles tinham um caminhão com uma placa do lado: “Mudanças, carreto, etc.”

– Bendito et cetera ― disse Luiza, puxando o Antônio de novo.

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