Felicidade Clandestina – Clarice Lispector

By | 17/05/2013

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Leia também:
O Silêncio das Sereias – Franz Kafka

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50 thoughts on “Felicidade Clandestina – Clarice Lispector

  1. debora

    mto boa esta crônica!

    Não precisa gritar moça, brigado pela informação.

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    1. Weber

      Todo sofrimento vale a pena, quando se é por um grande amor:a incrível leitura!

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  2. tal do mula

    aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaasssssssssssssddddddddddddfffffffffgggggggggggqqqqqqwweeeeeeeerrrrrrrrttttttttyyyyyyyyyyyyuuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiooooooooopppppppppppp´´´´´´´´´´[[[[[[[[[[[]]]]]~~~~~~~~~~~~ççççççççllllllllllllllkkkkjjjjjjjjjjjjjjhhhhhhhhhhhhhhhgggggggffffffffffffddddddddddddddddssssssssssssssaaaaaaaaaaaaaaa\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\zzzzzzzzzzzzzzzzzzzxxxxxxxxxxxxcccccccccccccvvvvvvvvvvvvvvbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbnnnnnnnnnnnnnmmmmmmmmmmmmmmm,,,,,,,,,,,,,,,,,………….;;;;;;;;;;;;;;;;;/]çjgderserytibl

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  3. Feminino

    Posso usar esse texto como um exemplo de bullying nas escola brasileiras??? Ela menciona tortura e plano diabólico…

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  4. Hiderson Martins

    É um ótimo conto não somente um conto mas, uma história de reflexão.

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  5. Pingback: conto brasileiro -‘Clarice | falandonalata1

  6. Cacilda Martin

    Muito boa, ela narra o cotidiano de algumas pessoas no intimo, mas ela mesmo se como como dá pra ver também era um fantoche do mundo, algum vazio avia nela, pois vemos um cigarro na mão com certeza era uma fuga, ou por ter tirado a foto se mostrando por acompanhar o modismo da atualidade o charme de fumar, pois bem, se assim o for ela não tinha opinião própria, isto quer dizer fantoche do modismo da época mas, nem por por isto deixa de ser muito boa nas suas narrativas, como ela mesmo disse certos defeitos nos sustententa.

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    1. Erick

      Perdeu a preciosa chance de ficar quieta e não falar bobagem.
      A Clarice fumava? Sim.

      Mas essa foto não é dela! É um ensaio de uma atriz e playmate americana, chamada Alice Denham.

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    1. FRANCIELLY.Alvez

      _ Gostei Muito Atê Porque O Fato De ser Um Conto Bibiografo Que É uma História Que Faz Parte da Sua Vida Posso Dizer que faz parte Da Minha tambem; Coisas que Ela citou como tortura e Planos diabólicos que afetam a Nós mesmo .
      E Talvez me Ensinou a Sempre Refletir A Verdade .

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  7. Cláudia

    Qual é o acontecimento importante desse conto ? Alguém pfv

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    1. Anônimo

      Que A Gente Ň Deve Sempre espera nada De alguém Pois Bem Nem Tudo bem Até Nois

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  8. Regina Maura Tomaz

    Texto maravilhoso. Porém, está cheio de errinhos de pontuação……

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  9. nanda

    eu amei , que pena que a clarice morreu porque , se ela estivesse viva ate hoje eu ia ser como ela uma escritora de livros , porque eu adorei de coração por isso que as pessoas tem que ler com calma pra gente saber como ela passou na sua vida etc.

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  10. Anônimo

    Saudade: presença dos ausentes.

    Olavo Bilac

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  11. Alisom Borges Duarte

    A moça estava a sofrer com o início da juventude,a cobrança por ser filha do dono da livraria a levou a exageros, desenvolveu uma compulsão por belas.

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