São Paulo – Crônica de Rachel de Queiroz

Este 1954 é o ano de São Paulo. E comemorando o quarto centenário de sua existência, os seus “quatro séculos de luta”, como diz Mario Guimarães no subtítulo do seu belo livro, São Paulo vê que não está sozinho na grande festa, que o Brasil inteiro acode enternecido à comemoração dos anos do irmão maior, num grande entusiasmo, num desvanecido orgulho fraternal.

Quando gente de espírito mesquinho procura criar e acirrar essa ridícula e, acima de tudo, inexistente querela entre paulistas e nortistas, a coisa é irritante, mas não é para alarmas. É mesmo só para desprezar. Pois como poderia o irmão, menor ou mais jovem, mais fraco ou menos feliz, ter querela com o irmão grande e querido, cujo progresso é o progresso de nós todos, cuja riqueza por todos nós se reparte, cuja indústria praticamente nos veste e nos supre de tudo; São Paulo hospitaleiro, São Paulo sempre fiel, o primeiro a acorrer na hora da aflição, o primeiro a acudir na hora da ameaça?

E essa mesma gente gosta muito, também, de falar no orgulho dos paulistas, no bairrismo cerrado dos paulistas. Ousam mesmo aludir a um suspeito “separatismo” dos paulistas! Nesta hora festiva do quarto centenário, é bom que todos deem o seu testemunho e ajudem a desfazer essa invenção injusta. Porque nunca houve recanto do Brasil que fosse mais Brasil do que São Paulo. Conto por mim, que depois da revolução de 1932 cheguei a São Paulo, e ainda encontrei os paulistas sangrando, os mutilados andando nas ruas, as viúvas com roupas de dó. E os malvados gostavam de nos prevenir acerca de um imaginário ressentimento dos paulistas, contra os nortistas, já que de batalhões nortistas se compunha o grosso da tropa legalista e vencedora. Pois a verdade é que, com esta cara de nortista que Deus me deu, com esta cabeça chata indisfarçável, com esta fala arrastada de cearense, nunca, na cidade de São Paulo, ainda malferida da guerra, me foi negado o sorriso, me foi menos cordial a acolhida; nem na minha terra de nascimento me sentia eu mais em casa, do que nos dois anos em que lá morei!

A verdade é que São Paulo já cresceu muito, já cresceu o suficiente para transbordar dos limites provincianos e dessas estreitezas regionalistas. São Paulo acolhe à sua sombra, generosamente, quem quer que o ame e o ajude. Se não repele estrangeiros das procedências mais longínquas e diferentes, amarelos da Ásia, levantinos, balcânicos, mongóis, hindus e escandinavos, quanto mais os próprios irmãos brasileiros que, na verdade, lá chegam e lá triunfam e sempre são os primeiros a proclamar com orgulho que se sentem paulistas também.

Falei acima na Revolução de 32. Nunca é demais lembrar que então como sempre, São Paulo mais uma vez se fez credor do nosso agradecimento, da nossa amizade; longe de ser um assomo separatista da província de São Paulo, a guerra civil de 32 foi, na realidade, uma luta pela legalidade legítima e não contra a legalidade. Uma luta do povo armado em defesa da constituição que nos negavam, contra o poder ditatorial que procurava eternizar-se. E se não fosse o sacrifício de São Paulo que, apesar de vencido, ditou lei ao vencedor, entraríamos no Estado Novo sem a pausa para respirar que foi o período constitucional de 34 a 37. Teríamos caído, da ditadura provisória no fascismo organizado, sem um grito e sem um tiro. Dessa vergonha, pelo menos, o sangrento protesto de São Paulo nos livrou. E de que é que se faz a história da liberdade senão de batalhas perdidas?

Dessa espécie é o “separatismo” de São Paulo.

No parque de Ibirapuera ergue São Paulo o monumento do seu quarto centenário que é, de certa forma, também o quarto centenário do Brasil.

E ao pé do grupo de granito que recorda os bandeirantes, pioneiros da nossa grandeza, inventores do Brasil de terras adentro, defensores da nacionalidade desde os primeiros dias da colônia, quero depor, como se depusesse uma flor, esta homenagem de cabeça chata. Homenagem a São Paulo porque é São Paulo e porque é tão Brasil.

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