De mel a pior – Crônica de Fernando Sabino

By | 12/04/2022

– Qual é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo adequar? – pergunta-me ele ao telefone.

– Nós adequamos – respondo com segurança.

– Primeira do singular – insiste ele.

– Espera lá, deixe ver. Com essa você me pegou. E arrisco, vacilante:

– Eu adéquo?

– Não, senhor.

– Eu adeqúo? Não pode ser.

– E não é mesmo.

– Então como é que é?

– Quer dizer que você não sabe?

– Deixe de suspense. Diga logo.

– Não tem. É verbo defectivo.

– E você me telefonou para isso?

Verbo defectivo. Tudo bem. Eu não teria mesmo oportunidade de usar esse verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Nunca me adéquo a questões como esta.

– Presente do indicativo ou indicativo presente? – é a minha vez de perguntar. – No nosso tempo era indicativo presente.

E é a vez dele não saber. Desculpa-se dizendo que andaram mudando tanto a nomenclatura gramatical, que a gente acaba não sabendo mais nada.

– E o verbo delinquir? – torna ele.

– Que é que tem o verbo delinquir – quero saber, cauteloso.

– A primeira do singular?

– Não tem. Também é defectivo. Mas ele é teimoso:

– E se um criminoso quiser dizer que não delinque mais?

– Se usar esse verbo, já delinquiu.

E acrescento, num tom de quem não sabe outra coisa na vida:

– Além do mais, leva trema no u. Para que se fale delincuir, que é a pronúncia correta.

– Quem fala delinqir, sem o u, vai ver é da polícia.

– Ou quem fala tóchico, como diz o Millôr.

– O Millôr fala tóchico?

– Não. O Millôr é que disse que quem fala… Ora, deixa para lá. Ele volta à carga:

– O trema já não foi abolido?

– Que abolido nada. Aboliram tudo, menos o trema.*

– Por falar nisso, outro verbo defectivo.

– Qual?

– Abolir: não tem primeira do singular.

– Como não tem? – reajo. – Eu abulo.

– Neste caso seria eu abolo.

– Coisa nenhuma. Eu abulo, sim senhor.

E invoco a autoridade de quem sabe o que diz:

– Não é eu expludo? Pelo menos o Figueiredo não me deixa mentir.

– O Cândido ou o Fidelino?

– O João mesmo. O presidente. Ele falou expludo e não explodo.

– Se vale essa regra, deveria ser eu cumo, eu murro, eu murdo…

– Então me diga uma coisa: você sabe qual é a primeira do singular do verbo parir no indicativo?

– Ninguém pare no indicativo.

– Pare, e em todos os tempos, meu velho.

– Esse, quem não corre risco de usar sou eu.

– Pois então fique sabendo: é simplesmente igual à primeira pessoa do singular do verbo pairar.

– Eu pairo?

– É isso aí. Uma senhora que tem muitos filhos pode perfeitamente dizer: eu pairo um filho por ano.

– Co’s pariu!

– Se não quiser acreditar, não acredite. É a vez dele:

– Você sabe qual é o plural de mel?

– Já vem você. Mel não tem plural.

– Como não tem? Tem até dois.

E me conta que outro dia um entendido em mel fazia uma preleção sobre o assunto na televisão. No que saiu do singular para se meter no plural, quebrou a cara:

– Acabou falando que existem muitos mels diferentes.

– E não existem?

– Existem. Mas não mels. Com essa ele se deu mal.

– Se deu mel, então.

Era a asa da imbecilidade começando a ruflar aos meus ouvidos:

– Ou você vai me dizer que mel também é verbo defectivo?

– Perguntei a uma amiga que entende.

– De mel?

– Não: de plural. Ela confirmou: tanto pode ser méis como meles.

Mels é que jamais.

A esta altura o mentecapto fala mais alto dentro da minha cabeça:

– Dos meles, o menor.

Como ele não responde, acrescento:

– Até logo. Melou o assunto. E desligo o telefone.

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