Deus e o Diabo – Conto de Rubem Fonseca

Avenida Atlântica. Senti meu ombro sendo tocado. Era M.

“Você sumiu”, disse M. “Deixou de…”

“Comprei um sítio na Serra com duas nascentes dentro da propriedade e agora estou criando rãs.”

“Criando rãs? Aquela espécie de sapo?”

“São muito diferentes. Os sapos preferem viver em terra firme e só procuram locais aquáticos quando vão se reproduzir. As rãs…”

“Você cria essa coisa pra quê?” “Para vender.”

“Quem compra?”

“Restaurantes, açougues… É um alimento muito procurado, por pessoas sofisticadas, evidentemente.”

“Caramba. Tem gente que come essa merda?” “É uma delícia.”

“Você come?” “Como, grelhada.”

“Cara, não estou te reconhecendo. Você largou o trabalho para fazer isso?” “Eu não gostava do que fazia.”

“Qual o problema? A grana não era boa?” “Eu não gostava.”

“Você sempre dizia que só despachava gente que merecia ir para o inferno.”

“É difícil de explicar. O cara merece ir para o inferno, mas não sou eu que devo fazer isso, entendeu?”

“Me lembro, nas poucas vezes em que trabalhamos juntos, que você dizia ‘em gente inocente não se dá um peteleco’.”

“Claro, gente inocente tem que ser protegida.” “Você gostava de fazer o serviço sozinho.”

“É verdade. Não gostava de ficar de olho no parceiro.” “Você ficava de olho no parceiro?”

“Ficava. Para ele não fazer besteira. Você tinha a mania de bater nas pessoas que moravam na casa do sujeito que íamos despachar. Bater na empregada? Eu não deixava. Bater em criança?”

“Você não deixava, eu sei, você não deixava. Lembra daquele cara que fomos despachar no Leblon?”

“Vagamente. Estou tentando esquecer…”

“Tinha uma menina, de uns oito anos, que caiu da janela.” “Lembro, lembro, ela chorava muito.”

“Quer saber de uma coisa?” “O quê?”

“Ela não caiu da janela.” “Como assim?”

“Eu joguei ela lá de cima, numa hora que você estava distraído.” “Jogou a menininha lá de cima?”

“A pirralha se esborrachou na calçada. Gostei de fazer aquilo.” Fiquei um tempo calado, ruminando.

“Eu moro neste prédio. Décimo andar. Não quer subir para tomar um drinque?”, perguntei.

“Um uísque? Grande ideia, cara, vamos logo. Este prédio é antigo? Não tem nem porteiro.”

“É muito antigo.” Subimos.

“Você mora sozinho?” “Moro.”

“Apartamento velho mas bacana”, disse M. assim que entramos. “Você precisa ver a vista. A praia, o mar.”

Levei-o até a varanda.

“Dá uma olhada”, eu disse.

M. era leve. Peguei-o pelas pernas e joguei-o para fora da varanda, para ele se esborrachar lá embaixo.

Ele merecia ir para o inferno. Mas aquela era a última vez que eu ia bancar… Deus? O Diabo? Meu negócio era criar rãs.

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