Eu Era Mudo e Só – Conto de Lygia Fagundes Telles

Sentou na minha frente e pôs-se a ler um livro à luz do abajur. Já está preparada para dormir: o macio roupão azul sobre a camisola, a chinela de rosinhas azuis, o frouxo laçarote de fita prendendo os cabelos alourados, a pele tão limpa, tão brilhante, cheirando a sabonete provavelmente azul, tudo tão vago, tão imaterial. Celestial.

– Você parece um postal. O mais belo postal da coleção Azul e Rosa. Quando eu era menino, adorava colecionar postais.

Ela sorriu e eu sorrio também ao vê-la consertar quase imperceptivelmente a posição das mãos. Agora o livro parece flutuar entre seus dedos tipo Gioconda.

Acendo um cigarro. Tia Vicentina dizia sempre que eu era muito esquisito. “Ou esse seu filho é meio louco, mana, ou então…” Não tinha coragem de completar a frase, só ficava me olhando, sinceramente preocupada com meu destino. Penso agora como ela ficaria espantada se me visse aqui nesta sala que mais parece a página de uma dessas revistas da arte de decorar, bem-vestido, bem barbeado e bem casado, solidamente casado com uma mulher divina-maravilhosa, quando borda, o trabalho parece sair das mãos de uma freira e quando cozinha!… Verlaine em sua boca é aquela pronúncia, a voz impostada, uma voz rara. E se tem filho então, tia Vicentina? A criança nasce uma dessas coisas, entende? Tudo tão harmonioso, tão perfeito. “Que gênero de poesia a senhora prefere?”, perguntou o repórter à poetisa peituda e a poetisa peituda revirou os olhos, “O senhor sabe, existe a poesia realista e a poesia sublime. Eu prefiro a sublime!”. Pois aí está, tia Vicentina.

– Sublime.

– Você falou, meu bem? — perguntou Fernanda sem desviar o olhar do livro.

– Acho que gostaria de sair um pouco.

– Para ir aonde?

“Tomar um chope”, eu estive a ponto de dizer. Mas a pergunta de Fernanda já tinha rasgado pelo meio minha vontade. A primeira pergunta de uma série tão sutil que quando eu chegasse até à rua já não teria vontade de tomar chope, não teria vontade de fazer mais nada. Tudo estaria estragado e o melhor ainda seria voltar.

Levanto-me sentindo seu olhar duplo pousar em mim, olhar duplo é uma qualidade raríssima, pode ler e ver o que estou fazendo. Tem a expressão mansa, desligada. Contudo, o olhar é mais preciso do que a máquina japonesa que comprou numa viagem: “Veja”, disse, mostrando a fotografia, “até a sombra da asa da borboleta a objetiva pegou”. Esse olhar na minha nuca. Não consegue captar minha expressão porque estou de costas.

– E se não vê a sombra das minhas asas é porque elas foram cortadas.

– Que foi que você resmungou, meu bem?

– Nada, nada. É um verso que me ocorreu, um verso sobre asas. Ela contraiu as sobrancelhas.

– Engraçado, você não costuma pensar em voz alta.

Ela sabe o que costumo e o que não costumo. Sabe tudo porque é exemplar e a esposa exemplar deve adivinhar. Mordisco o lábio devagarinho, bem devagarinho até a dor ficar quase insuportável. Adivinhar meu pensamento. Sem dúvida ela chegaria um dia a esse estado de perfeição. E nessa altura eu estaria tão desfibrado, tão vil que haveria de chorar lágrimas de enternecimento quando a visse colocar na minha mão o copo d’água que pensei em ir buscar.

Abro a janela e sinto na cara o ar gelado da noite. A lua, não, a lua já tinha sido quase tocada, talvez nesse instante mesmo em que a olhava algum abelhudo já rondava por lá. Solidão era solidão de estrela. “Sei que a solidão é dura às vezes de aguentar”, disse Jacó no dia que soube do meu casamento. “Mas se é difícil carregar a solidão, mais difícil ainda é carregar uma companhia. A companhia resiste, a companhia tem uma saúde de ferro! Tudo pode acabar em redor e a companhia continua firme, pronta a virar qualquer coisa para não ir embora, mãe, irmã, enfermeira, amigo… Escolher para mulher aquela que seria nosso amigo se fosse homem, esse negócio então é o pior de todos. Abominável. Estremeço só em pensar nesse gênero de mulher que adora fazer noitada com o marido. Querem beber e não sabem beber, logo ficam vulgares, desbocadas…” Enveredamos proseando por uma rua de bairro, Jacó e eu. As casas eram antigas e havia no ar um misterioso perfume de jardim. Eu ria das coisas que Jacó ia dizendo, mas meu coração estava inquieto. Quando passamos por um bar, ele me tomou pelo braço: “Vamos beber enquanto ainda podemos beber juntos”. Quase cheguei a me irritar, “Você não conhece a Fernanda. Ela é tão sensível, tão generosa, jamais pensará sequer em interferir na minha vida. E nem eu admitiria”. Ele ficou olhando para o copo de uísque. “Mas está claro que ela não vai interferir, meu querubim. O processo será outro, conheço bem essas moças compreensivas, ora se!…” O ambiente estava aconchegante, o uísque era bom, estava gostando tanto de rever Jacó com sua boina e o sobretudo antiquíssimo. Recém-casado com a mulher que amava. E então? Por que não estava feliz? “Das duas, uma”, prosseguiu Jacó enchendo a boca de amendoins. “Ou a mulher fica aquele tipo de amigona e etecetera e tal ou fica de fora. Se fica de fora, com a famosa sabedoria da serpente misturada à inocência da pomba, dentro de um tempo mínimo conseguirá indispor a gente de tal modo com os amigos que quando menos se espera estaremos distantes deles as vinte mil léguas submarinas. No outro caso, se ficar a tal que seria nosso amigo se fosse homem, acabará gostando tanto dos nossos amigos, mas tanto que logo escolherá o melhor para se deitar. Quer dizer, ou vai nos trair ou chatear. Ou as duas coisas.”

– Esses cigarros devem estar velhos — disse Fernanda.

Volto-me devagar. Ela abre as páginas do livro com uma pequena espátula de marfim.

– Que cigarros?

– Esses da caixa, meu bem. Não foi por isso que você não fumou?

Abro o jornal. Mas que me importa o jornal? Queria outra coisa e olho em redor e não sei o que poderia ser.

– Fernanda, você se lembra do Jacó?

– Lembro, como não? Era simpático o Jacó.

– Era… Você fala como se ele tivesse morrido. Ela sorriu entre complacente e irônica.

– Mas é como se tivesse morrido mesmo. Sumiu completamente, não?

– Completamente — respondo.

E escondo a cara atrás do jornal porque nesse instante exato eu gostaria que ela estivesse morta. Irremediavelmente morta e eu chorando como louco, chorando desesperado porque a verdade é que a amava, mas era verdade também que fora uma solução livrar-me dela assim. Uma morta pranteadíssima. Mas bem morta. E todos com uma pena enorme de mim e eu também esfrangalhado de dor porque jamais encontraria uma criatura tão extraordinária, que me amasse tanto como ela me amou. Sofrimento total. Mas quando viesse a noite e eu abrisse a porta e não a encontrasse me esperando para o jantar, quando me visse só no escuro nesta sala, então daria aquele grito que dei quando era menino e subi na montanha.

– Hoje você está cansado, não está?

Ergo o olhar até Fernanda. A mãe de minha filha. Minha companheira há doze anos, pronta para ir buscar aspirina se a dor é na cabeça, pronta para chamar o médico se a dor é no apêndice. Sou um monstro.

– Cansado propriamente não. Sem ânimo.

– Já reparei que ultimamente você anda esfregando muito os olhos, acho que devia ir ao oculista.

Não podia mais esfregar os olhos. Era bom esconder os polegares dentro da mão e ficar esfregando os olhos com os nós dos dedos, mas se continuasse fazendo isso teria que ir ao oculista para explicar. Os menores movimentos tinham que ter uma explicação, nenhum gesto gratuito, inútil. Abri a televisão e a moça de peruca loura me avisou que eu perderia os dentes se não comprasse o dentifrício… Desliguei depressa. Beba, coma, leia, vista — ah! Ah.

– Eu era mudo e só na rocha de granito.

Fernanda teve um risinho cascateante, é especialista nesse tipo de riso.

– Meu bem, quando eu era menina ouvi uma declamadora recitar isso numa festa em casa de uma tia velhinha, foi tão divertido. Ela gostava de recitar isso e aquela outra coisa ridícula, se a cólera que espuma!

Tão fina, não? Tão exigente. Poesia mesmo, só a de T. S. Eliot. Música, só a de Bach, “Pronuncia-se Barh”, ensinou afetadamente ainda ontem para Gisela. Só lê literatura francesa, “Ih, o Robbe-Grillet, a Sarraute”… Como se tivesse há pouco tomado um café com eles na esquina.

– Ridículo por quê, Fernanda? São poesias ótimas.

– Ora, querido, não faça polêmica — murmurou ela inclinando a cabeça para o ombro. Levantou a espátula: — Tinha me esquecido, imagine que Gisela teve distinção em inglês. Vai ganhar uma medalha.

Gisela, minha filha. Já sabia sorrir como a mãe sorria, de modo a acentuar a covinha da face esquerda. E já tinha a mesma mentalidade, uma pequenina burguesa preocupada com a aparência, “Papaizinho querido, não vá mais me buscar de jipe!”. A querida tolinha sendo preparada como a mãe fora preparada, o que vale é o mundo das aparências. As aparências. Virtuosas, sem dúvida, de moral suficientemente rija para não pensar sequer em trair o marido, e o inferno? De constituição suficientemente resistente para sobreviver a ele, pois a esposa exemplar deve morrer depois para poupar-lhe os dissabores.

Era o círculo eterno sem começo nem fim. Um dia Gisela diria à mãe qual era o escolhido. Fernanda o convidaria para jantar conosco, exatamente como a mãe dela fizera comigo. O arzinho de falsa distraída em pleno funcionamento na inaparente teia das perguntas, “Diz que prolonga a vida a gente amar o trabalho que faz. Você ama o seu?…”. A perplexidade do moço diante de certas considerações tão ingênuas, a mesma perplexidade que um dia senti. Depois, com o passar do tempo, a metamorfose na maquinazinha social azeitada pelo hábito de rir sem vontade, de chorar sem vontade, de falar sem vontade, de fazer amor sem vontade… O homem adaptável, ideal. Quanto mais for se apoltronando, mais há de convir aos outros, tão cômodo, tão portátil. Comunicação total, mimetismo: entra numa sala azul fica azul, numa vermelha, vermelho. Um dia se olha no espelho, de que cor eu sou? Tarde demais para sair porta afora. E desejando, covarde e miseravelmente desejando que ela se volte de repente para confessar, “Tenho um amante”. Ou então que, em vez de enfiar a espátula no livro, enterre-a até o cabo no coração.

– Cris passou ontem lá na loja — disse ela. — Telefonou, você não estava.

Parecia preocupado, não concordou com sua compra de tratores.

– E o que aquele filho de uma cadela entende de trator?

– Manuel!

– Desculpe, Fernanda, escapou. Mas é que nunca ele entendeu de tratores, fica falando sem entender do assunto.

E eu? Eu entendo? Penso no senador. Quanto tempo levei para entender aquele seu sorriso, quanto tempo. Estávamos os dois frente a frente, meu futuro sogro e eu. Ele brincava com a corrente do relógio e me olhava disfarçadamente, também tinha esse tipo de olhar duplo. “Se minha filha decidiu, então já está decidido. Apenas o senhor ainda não me disse o que gostaria de fazer.” Procurei encará-lo. O que eu gostaria de fazer? Voltei-me para Fernanda que se sentara ao piano e cantarolava baixinho uma balada inglesa, uma balada muito antiga que contava a história de uma princesa que morreu de amor e foi enterrada num vale, “and now she lays in the valley”… O senador brincava ainda com a corrente: “Sei que o senhor é jornalista, mas está visto que depois do casamento vai ter que se ocupar com outra coisa, Fernanda vai querer ter o mesmo nível de vida que tem agora. Desde que deixei a política, vou de vento em popa no meu negócio. Queria convidá-lo para ser meu sócio. Que tal?”. Fiquei olhando para sua corrente de ouro. “Mas, senador, acontece que não entendo nada de máquinas agrícolas!” Ele levantou-se para se servir de conhaque. E teve aquele sorriso especialíssimo, cujo sentido não consegui alcançar. “Entre para a firma, meu jovem, entre para a firma e vai entender rápido.” Aceitei o conhaque. “O senhor me desculpe a franqueza, senador, mas o caso é que detesto máquinas…” Ele agora examinava a garrafa que tinha um rótulo pomposo, mas com o olhar sobressalente me observava. “Não importa, jovem. Vai entender e vai até gostar, questão de tempo.” Baixei a cabeça, confundido. Questão de tempo? Tive então uma vontade absurda de me levantar e ir embora, sumir para sempre, sumir. Largar ali na sala o senador com suas máquinas, Fernanda com suas baladas, adeus, minha noiva, adeus! Tão forte a vontade de fugir que cheguei a agarrar os braços da poltrona para me levantar de um salto. A música, o conhaque, o pai e a filha, tudo, tudo era da melhor qualidade, impossível mesmo encontrar lá fora uma cena igual, uma gente igual.

Mas gente para ser vista e admirada do lado de fora, através da vidraça. Acho que cheguei mesmo a me levantar. Dei uma volta em torno da mesa, olhei para o senador, para Fernanda, para o gato siamês enrodilhado na almofada. Fiquei. Fui relaxando os músculos, sentei-me de novo, bebi mais um pouco e fiquei. Fernanda cantava e a balada me pareceu desesperadamente triste com sua princesa enterrada num vale solitário, onde cresciam flores silvestres. Alguma coisa também parecia ter morrido em mim, “and now she lays in the valley where the wild flowers nod”…

– Quer ouvir música? — Fernanda perguntou, baixando o livro. — Gisela trouxe discos novos.

Já estou há algumas horas sem fazer nada, alheado. E a esposa exemplar não deve deixar o homem com a mente assim em disponibilidade.

– Agora não, depois.

Abro uma revista. Ela então inclinou a cabeça sob o halo redondo do abajur e recomeçou a ler. Que quadro! Se tivesse um grande cão sentado aos pés dela, um são-bernardo, por exemplo, a cena então ficaria perfeita. Mas mesmo sem o cachorrão peludo o quadro está tão bem-composto que não resisto de olhos abertos. Guardo o postal no bolso. Fernanda ficou impressa num postal, pronto, posso sair de cabeça descoberta e sem direção, ninguém me perguntou para onde vou nem a que horas devo voltar e se não quero levar um pulôver — ah! maravilha, maravilha. Não precisou ter amantes, não precisou morrer, não precisou acontecer nada de desagradável, de chocante, de repente tudo se imobilizou e virou uma superfície colorida e brilhante, para sempre um postal, um belíssimo postal que superou todos os que já vi em matéria de perfeição. Posso levá-lo comigo, mas como postal não faz perguntas não preciso dizer por que vou indo delirante rumo ao cais. Já vislumbro o navio em meio da cerração e a água mansa batendo no casco e o cheiro de mar. O cheiro de mar. O apito subindo pesadamente com a âncora, depressa, depressa que a escada ainda me espera! Subo levíssimo. Vai para Sumatra? Vai para Hong-Kong? O navio avança e um claro mar de estrelas vai-se abrindo em minha frente. Senta-se ao meu lado um companheiro de viagem. Não o distingo bem no escuro e isso nos faz mais livres ainda, dois passageiros sem bagagem e sem feições. Tiro o postal do bolso: “Esta era minha mulher. Esta era minha casa”. O homem aproxima a brasa do cigarro da mancha azul e rosada que é Fernanda. “Ela morreu?”, pergunta ele. “Não, não morreu. Uma noite ela virou este cartão. Tinha ainda uma menininha, um cachorro, um piano, tinha muitas coisas mais. Viraram este cartão.” O homem não faz comentários. Guardo o postal no bolso. Posso também rasgá-lo em pedacinhos e atirá-lo no mar, não importa, é só um cartão e eu sou apenas um vagabundo debaixo das estrelas. Oh, prisioneiros dos cartões-postais de todo o mundo, venham ouvir comigo a música do vento!

Nada é tão livre como o vento no mar!

– Será que você pode fechar a janela? — pede Fernanda. — Esfriou, já começou o inverno.

Abro os olhos. Eu também estou dentro do postal. Devo estar envelhecendo para começar a soma das compensações. Mas a alegria simples de sair em silêncio para visitar um amigo. De amar ou deixar de amar sem nenhum medo, nunca mais o medo de empobrecer, de me perder, já estou perdido! Poderei tomar um trem ou cortar os pulsos sem nenhuma explicação?

Através do vidro as estrelas me parecem incrivelmente distantes. Fecho a cortina.

2.137 Visualizações