Meia-Noite em Ponto em Xangai – Conto de Lygia Fagundes Telles

A longa bata de brocado azul caiu-lhe aos pés. Avançou nua em direção ao espelho de moldura de laca vermelha. Girou sobre os calcanhares para se ver de perfil.

Levantou o busto. Encolheu o estômago. Olhando ainda para o espelho, como se convidasse a própria imagem a acompanhá-la, mergulhou na banheira. Cerrou os olhos, as mãos flutuando à altura do ventre. Um leve rubor coloriu-lhe o rosto.

Ficou assim imóvel durante algum tempo.

– Wang! — chamou, sentando-se na banheira. — Wang!

O chinês entrou na sala de banho. Cruzou as mãos e inclinou um pouco o corpo para a frente. Tinha os olhos baixos:

– Madame?…

– Os sais.

O homem aproximou-se do toucador de laca vermelha. Um ligeiro vapor d’água embaçava o espelho e os frascos de perfume, dispostos sobre a toalha de renda dourada. Havia dois boiões de sais: um amarelo, o outro rosado.

– Magnólia, madame?

– Magnólia.

O chinês destapou o boião amarelo. Colheu os sais com uma concha. Em seguida, delicadamente, foi deixando que caíssem na água.

– Suficiente, madame?

Entreabriu os olhos. Aspirou o perfume de magnólia. Os sais cintilavam como areia dourada sobre seu corpo.

– E Ming?

– Está dormindo no sofá — disse o chinês apanhando a bata. Estendeu-a cuidadosamente na cadeira. Curvou-se: — Mais alguma coisa, madame?

– Vá buscar o Ming.

O chinês era alto e magro. Poderia ter trinta anos, poderia ter cinquenta. Usava alparcatas pretas e uma túnica preta, abotoada até o pescoço. Pisava mansamente, como falava. Os gestos redondos.

– Meu queridinho, será que você não cansa de dormir? — murmurou a mulher, acariciando o focinho do pequinês cor de mel. E para o criado: — Trouxe o uísque?

– E também o gelo — acrescentou ele, o olhar inexpressivo na direção da mulher que se ensaboava. — Chegou uma cesta de flores, madame.

– Mais flores? Ponha com as outras no corredor… Não, espera, pode pôr perto da janela. Quando você sair, leve para fora. E acenda as luzes da sala, Mister Stevenson deve estar chegando.

– Então é ele que está batendo.

– Estão batendo? Não ouvi nada.

O chinês deixou a porta entreaberta e dirigiu-se para a sala no seu passo tranquilo. Pela fresta ela viu passar o homem de smoking e cachimbo.

– Stevenson? Sente-se aí, meu caro. Já estou saindo do banho, um momento!

– Não se apresse, vim apenas cumprimentá-la mais uma vez, não podia dormir sem dizer-lhe que foi extraordinário! Nunca ouvi coisa igual na minha vida!

– Verdade? — Mergulhou voluptuosamente até às orelhas. — Para ser sincera, não gostei muito da minha interpretação, a Du bist die Ruh podia ter sido melhor, não podia?

– Mas, madame, foi esse o seu ponto máximo! Ficou de pé dentro da banheira. Sacudiu-se friorenta.

– Wang! Ligeiro, minha toalha! E feche a porta.

Enxugou-se rapidamente e apanhou o frasco de água–de-colônia. Perfumou-se, pródiga.

– Já vou indo, Stevenson!

O homem serviu-se de uísque.

– Jamais a China ouviu cantora igual — exclamou, levantando o copo: — Bebo à saúde da maior soprano dramática do mundo!

Ela sorria ainda, polvilhando o corpo de talco. Vestiu a bata, amarrou o cinto e voltou-se lânguida para o espelho. Abotoou os lábios como se fosse beijar a própria imagem. Calçou as chinelas bordadas.

– Você é tão generoso, Stevenson.

– Não ouvi, madame…

– Eu disse que você é generoso demais!

– Generoso, por quê? Foi mesmo um sucesso, madame. E os convites que temos recebido? Laffont, dono de quase todos os cassinos e estádios de corridas de cães, um dos tipos mais ricos da China, quer que madame cante na recepção que vai dar na quinta-feira. Quer presenteá-la com joias…

A mulher tirou os grampos da cabeça. A basta cabeleira loura caiu-lhe até os ombros. Escovou-a de leve e atirou-a para as costas. Abriu a porta.

– Quero uma cama de jade.

Ele beijou-lhe a mão numa profunda reverência.

– Madame terá um palácio de jade.

– Ah, Stevenson, Stevenson… Não estou tão certa assim, meu caro. Lotte Lehman me deixa longe.

– O homem franziu as sobrancelhas eriçadas. Tremiam-lhe as bochechas luzidias, cheias de veiazinhas roxas:

– Jamais a Lehman cantou como madame cantou esta noite. Pena o público, essa chinesada… Queria que hoje estivéssemos em Londres.

Ela bebia lentamente, sorrindo para a própria imagem refletida no espelho que ocupava quase toda a parede da sala.

– A Du bist die Ruh ela canta melhor do que eu.

Inclinando-se gravemente para a mulher, Stevenson tomou um ar imponente.

– Se a perfeição dura no tempo um só minuto, como queria Shakespeare, madame atingiu o seu minuto esta noite.

Recostando a cabeça no espaldar da poltrona, a mulher teve um risinho, “Ah, meu caro…”. O cachorro arranhou-lhe a barra do brocado. Latiu, estridente.

– Wang! — chamou ela. — Dê um banho no Ming. Mas com água bem quente, que a noite está meio fria. — Voltando-se para o homem disfarçou um bocejo: — Mas então, Stevenson?

Você dizia…

– Madame deve estar cansada, a glória cansa — sentenciou, olhando o relógio de pulso. — Acabo este uísque e já saio.

– Que horas são?

– Meia-noite em ponto em Xangai.

– E em Londres? — perguntou ela, fazendo girar a pedra de gelo no uísque. Teve um olhar sonhador para o céu negro, sem estrelas: — Na próxima vez quero cantar toda de preto, só com meu adereço de turquesas. Tem que ser um vestido espetacular, a cauda barrada de plumas… E o leque de plumas, adoro plumas.

Stevenson olhou pela porta entreaberta da sala de banho, onde o chinês lavava o cachorro debaixo da torneira.

– Pois eu desejaria apenas usar a roupa desse escravo aí dentro, desejaria mesmo ser esse escravo para de vez em quando levar a toalha à madame.

– Não queira ser isso, meu caro… Esse chinês não existe. Pode me ver nua, pode me ver de qualquer jeito, tanto faz, para mim ele não existe. Não sei explicar, mas não o considero realmente como gente. É como esta poltrona, este copo, esta almofada… Ou melhor, é como um bicho. Não me dispo diante do meu pequinês? É bom assim, fico tão à vontade. Acho que vou encaixotá-lo com a minha bagagem, meus criados andam impossíveis.

– Mas é um homem, madame. Um pária miserável, mas homem.

– Homem, homem… É um chinês, Stevenson.

– Não tem cara de quem toma ópio. Mas deve tomar, todos são viciados, o que é a nossa sorte. Madame já imaginou essa multidão acordada? Não estaríamos aqui agora…

– E o seu criado de quarto?

– Um parvo total. Deve ser o pior do hotel.

– Esse é razoável. E não cheira a peixe, como os outros — murmurou ela voltando o olhar para o lustre.

Pela primeira vez reparou nas pequeninas borboletas de porcelana azul, pousadas nas papoulas de porcelana e cristal desabrochadas em lâmpadas. Deslizou o olhar pelo biombo com pássaros e flores de madrepérola. Sorriu, melíflua:

– Pondo-se de lado o povo, tudo aqui é tão gracioso, tão amável. Eu não gostaria que isso mudasse, Stevenson.

– Não mudará, madame.

O cachorro escapou das mãos do criado e entrou correndo na sala. Sacudiu-se todo.

– Ming, você está me espirrando água — queixou-se a mulher, afastando-o. — Wang! depressa, a toalha que o pobrezinho está tremendo de frio… Por que deixou ele escapar?

O homem examinou o chinês mais atentamente.

– Ele entendeu o que nós dissemos? Tem cara de quem não entendeu nada.

– Entendeu tudo.

– Tudo?

– Lógico. Mas isso também não tem a menor importância.

– Meu criado só entende monossílabos. Já me queixei, vai ser posto na rua.

Num hotel desta categoria um camareiro não saber inglês. Absurdo.

Ajoelhado no tapete, o chinês enxugava o cachorro que gania em meio aos calafrios.

– Chega, Wang. Deixe ele agora em cima da almofada.

O homem desviou do chinês o olhar. Bebeu o último gole de uísque.

– Vou indo, madame. Almoçamos juntos amanhã? Acompanhou-o até a porta.

– Se acordar até a hora do almoço… Então oferecerei ao meu querido empresário um vinho de arroz. E uma sopa de barbatanas de tubarão.

– Dizem que aquilo é barbatana, mas desconfio que é cobra — murmurou ele, beijando a mão da mulher. — Essa gente é muito cavilosa, nunca se sabe.

Tomando-o pelo braço:

– Stevenson, você disse que a perfeição dura um minuto…

– Shakespeare, madame, Shakespeare.

– Tenho medo de ter alcançado já o meu minuto. Ele aprumou-se. Apertou-lhe as mãos.

– Segundo meus cálculos, o minuto de madame durará ainda algumas centenas de concertos. Boa noite, rainha.

Ela teve um sorriso meio incerto. Fechou a porta e dirigiu-se à sala. A voz ficou de novo fria.

– Pode apagar as luzes todas, deixe só o abajur pequeno aceso. E leve as flores para o corredor — ordenou entrando na sala de banho. Passou creme em redor dos olhos. — Avise na portaria que não estou para ninguém na parte da manhã. Para ninguém, ouviu?

– Está bem, madame. Boa noite.

Não respondeu. Quando voltou à sala, encontrou-a na penumbra, iluminada apenas pela fraca luz do abajur. Apanhou uma amêndoa, trincou-a, aproximando- se da janela. As flores da cesta brilhavam no escuro como se fossem feitas de material fosforescente.

– Wang, você ainda está aí? Por que não levou as flores?

Não teve resposta. Apertou o cinto da bata e estendeu-se molemente na poltrona diante da janela. O cachorro lambeu-lhe os pés. Ela puxou uma almofada.

– Deite-se aí, Ming — murmurou, inclinando-se. E voltou-se para o fundo da sala: — Wang?…

Eram raros e indistintos os ruídos que vinham lá de fora. Concentrou-se, mas dessa vez não olhou para trás.

– Wang? É você, Wang? Pegue as flores e vá-se embora, já disse.

Destacando-se dentre os sons menores, o trepidar de um riquixá subindo penosamente a rua. A mulher apoiou-se nos braços da poltrona, pronta para se levantar. Continuou sentada, olhando para a frente. Empertigou-se:

– Wang, eu sei que você está aí atrás, ouviu bem? Deixe de se esconder, vá- se embora! É uma ordem, Wang!

Na trégua de silêncio sua voz soou artificial, como se viesse do bojo do gramofone ao lado do biombo. O pequinês esticou o pescoço. Olhava fixadamente um ponto além da poltrona onde estava a mulher. Rosnou baixinho.

– Quieto, Ming! Quieto.

O cão baixou as orelhas, tremendo. Enfiou o focinho entre as patas, mas os olhos, esbugalhados, continuavam fixos no mesmo ponto. Ganiu doloridamente. Ela afundou aos poucos na cadeira. Não despregava o olhar do cachorro.

– Wang, deixe de ser idiota e saia imediatamente, está me ouvindo? Vamos! Saia!

O silêncio era agora tão compacto que os ruídos da rua já não conseguiam penetrá-lo. O cachorro rosnou mais uma vez, lambendo a pata.

A mulher foi-se encolhendo, agarrada aos braços da poltrona. Cravou o olhar esgazeado no retângulo negro do céu. Encolheu-se mais ainda, cruzando os braços. Limpou as mãos pegajosas no brocado da bata. Susteve a respiração.

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