O Noivo – Conto de Lygia Fagundes Telles

As batidas na porta eram suaves. Mas insistentes. Ele abriu os olhos. Sentou-se na cama.

– Emília? Você, Emília?

A mulher demorou um pouco para responder.

– Eu queria saber se o senhor já acordou. É que está chegando a hora…

– Hora do quê?

– Hora do casamento!

– Casamento? Que casamento?

– Que casamento, Emília?

Ela deu uma risadinha.

– O senhor já acordou mesmo? Acho que o senhor ainda está dormindo, é bom tomar café. Vou trazer o café.

Ele recostou a cabeça no espaldar da cama. Hora do casamento. Mas que casamento?

Hoje é quinta-feira, não? Quinta-feira, doze de novembro. Então? Quem é que se casa hoje? Não tenho nenhum casamento marcado para hoje. E logo cedo… Vagou o olhar pelo quarto. Estava ficando muito velha, coitada, aquilo era arteriosclerose, imagine, vir batendo na porta daquele jeito, “Hora do casamento! ” Bocejou. Os objetos do quarto flutuavam informes em meio da escuridão. Pensou em naufrágio num fundo de mar. Tão poético. Apertou os olhos e fixou-se no espelho oval que emergia das sombras como um peixe luminoso: Quinta-feira doze. “Que casamento é esse? Não sei de nada.”

– Emília! Casamento de quem? Que história é essa, Emília?!

Ela já não podia ouvi-lo. Atirando longe as cobertas, levantou-se. “Bobagem, não tenho casamento nenhum para hoje. Ainda bem, uma chateação” Apanhou os cigarros na mesa.

Antes, tocou com as pontas dos dedos tateantes no cinzeiro em formato de lua crescente presente de Naná, a Naná do tempo ainda das cerâmicas. Até abotoaduras lhe fizera, umas abotoaduras enormes, nenhum punho de camisa aceitaria abotoaduras daquele tamanho. Agora estava toda voltada para a escultura, o que era inquietante. “Qualquer dia desses vai me mandar um busto de Voltaire. E um Voltaire não se pode pôr na mesinha de cabaceira”, pensou enquanto deixava cair no cinzeiro o palito de fósforo.

“Aposto que o dia está azul”, murmurou ao abrir a janela. Um raio de sol varou o quarto. “Azul, azul”, repetiu sem nenhum entusiasmo. Poderia ir ao clube e depois almoçar com Naná se não fosse quinta-feira, dia em que ela devia fazer milhões de coisas. E os meninos estavam de férias. “Manda-se os pequenos para o zoológico e pronto”, decidiu ele dirigindo-se ao espelho. Passaria rapidamente pelo escritório e em seguida se meteriam num cinema, “ai, hoje não quero fazer nada de importante, nada”. Alisou os cabelos. Arregaçou os lábios para examinar os dentes.

“Os incisivos teriam que ser mais agudos”, lembrou-se e riu. Que pesadelo! Chegara a sentir nos braços que transformavam em asas, a penugem aveludada do morcego.

“Como pode o peixe vivo…” cantarolou olhando para o espelho. Foi então que viu: estendido na poltrona estava um fraque. Um fraque mesmo? Um fraque, via perfeitamente através do espelho as calças bem vincadas, o colete apontando dentro do paletó, a grava prateada pendendo até o chão.

“Um fraque”, repetiu ele fixando o olhar assombrado na própria imagem. Mas que frase era esse? E quem o deixara ali, quem? “Nunca tive nenhum fraque, não ia agora…” Soprou a fumaça do cigarro na direção do espelho. “Mas que bobagem é essa, meu Deus?! Quem deixou esse fraque comigo? Como se eu devesse vestir para alguma cerimônia. Para o casamento, a Emília não avisou? Hora do casamento, está na hora do casamento!”

Via-se embaçado no espelho como uma figura de sonho. Soprou mais fumaça. O fraque também se afastava num vapor azulado, breve reflexo de um espelho criador de imagens: uma face que podia ser de outra pessoa, um fraque que não era de ninguém. Baixou a cabeça. Emília tinha razão, ele estava mesmo precisando de um café. Um café que devia ser tomado rapidamente, “está na hora do casamento!” Deu alguns passos pelo quarto, rondava a poltrona, mas sem se atrever a tocar na roupa que agora se destacava dentre os móveis e objetos, tão nítida. “Mas que é isto? Quem é que trouxe este fraque aqui? Uma brincadeira?

Não, não era brincadeira, Emília era séria demais para entrar em brincadeira assim. E depois, onde é que estava a graça? Nem tinha cabimento. Um equívoco, então? Um simples equívoco? Aproximou-se da poltrona, estava agora mais curioso do que propriamente surpreendido. De quem seria? Passou a mão no paletó, cheirou-o: bem como tinha imaginado, um fraque novo. Intacto. Examinou o forro. Nele, apenas o nome do alfaiate, Cordis. Os bolsos vazios, claro.

“Cordis”, murmurou inexpressivamente. Nunca ouvira falar nesse alfaiate. Apanhou a gravata, examinou a etiqueta, uma etiqueta elegante, mas que também não lhe dizia nada, Pure Silk Made in Austria. “Nunca estive na Áustria. E nunca vi antes essa gravata.” Arqueou as sobrancelhas. Deixou cair a gravata. Um equívoco, é lógico, um amigo ia casar e a roupa viera para ele, Emília recebeu o pacote e pensou que. Mas que amigo seria esse?

– Posso entrar?

Ele teve um estremecimento, a voz de Emília parecia vir de dentro do espelho.

– Emília, e o… o fraque?

– Que é que tem o fraque? Não está aí?

– Está. Mas a calça amarrotou um pouco…

– Posso alisar se o senhor quiser. Mas já são quase nove horas, o casamento não é às dez? O café está aqui, o senhor não quer uma xícara?

– Agora não, depois.

“Depois”, repetiu baixando o olhar para a poltrona. Empalideceu. Via agora ao lado do armário uma maleta – a maleta que usava para viagens curtas – cuidadosamente preparada, como se daí a alguns instantes devesses embarcar. Ajoelhou-se diante da pilha de roupas. “Mas para onde? Não sei de nada, não sei de nada!…” Examinou os pijamas envoltos em celofane. Tocou de leve no calção de banho, nos shorts, nos sapatos de lona. Tudo novo, tudo pronto para uma curta temporada na praia, a lua de mel ia ser na praia. E quem ia se casar era ele.

Inclinando o corpo para trás, ainda de joelhos, sentou-se sobre os calcanhares, abriu as mãos e ficou olhando para as unhas. “Perdia a memória. Perdi a memória.” Fechou as mãos e bateu com os punhos fechados no chão. “Mas não, não é verdade, me lembro de tudo, como é que perdi a memória se me lembro de tudo?…”.

Levantou-se de um salto e arrancou o paletó do pijama. Mas que brincadeira é esta? Que jogo é este? “Estou ótimo, nunca estive tão em forma, sei tudo, lembro tudo, meu nome é Miguel, advogado, quarenta anos, trabalho na Goldsmith e Pedro é meu chefe, são chatos mas ganho bem, minha mãe morreu há três anos e Naná é minha amante, ela fazia cerâmica mas agora faz estátuas, o filho menorzinho é o Dudu… Na primeira gaveta da cômoda, do lado direito, estão as abotoaduras que ela fez para mim, são verdes e enormes, dentro de uma caixa está o cebolão que meu pai me deixou e também o medalhão com o retrato da minha mãe, ela está de mantilha, foi num baile de carnaval fantasiada de espanhola. Costumava me chamar de Mimi, lembro minha infância, tudo, tudo, avenida Paulista num casarão do avô, um casarão cor-de-rosa com um pé de jasmim no quintal, posso ainda sentir o perfume…”

Correu até a cômoda, abriu a gaveta: “Não falei?…”, murmurou ele apertando o medalhão entre os dedos. Sorri cheio de gratidão para o retrato da mulher loura que lhe sorria sob a mantilha de renda. “Olha aí, não falei?…” Beijou o medalhão e apanhou as abotoaduras verdes. Já desinteressado, levou ao ouvido o cebolão de ouro, fez girar a rosca da corda.

Levou-o de novo ao ouvido. Fechou a gaveta. “E então?” Esboçou um gesto na direção da poltrona. Lembrava-se de tudo, de tudo menos do casamento. Só essa faixa da memória continuava apagada, só nesse terreno a névoa se fechava indevassável, nomes, caras, tudo era escuridão. A começar pela noiva feita de nada, diluída no éter. As coisas se passavam como nas histórias encantadas, onde o príncipe mandava a vir a donzela de um reino distante sem tê-la visto nunca, o amor construído de um torno de um anel de cabelo, de um lenço, de um retrato. “E eu nem isso tenho. Ou tenho?” Devia ter um retrato, ao menos um retrato! Vagou o olhar pelas paredes, pelos móveis. Nada. Revolveu as gavetas. Folheou avidamente o álbum com antigos retratos da família, caras amarelas e mortas, desconhecidas na maioria.

Nas últimas paginas, ainda não colados, alguns retratos mais recentes: flagrantes de um piquenique, de um passeio de barco, de uma festa de formatura… Num instantâneo tirado ao lado de um trem, no meio de um grupo de amigos, estava Dora. Passou o polegar na silhueta ensolarada. Amor breve e brutal que começou na chácara, com encontros noturnos no celeiro, sob o voo negro dos morcegos. Mas Dora já estava cansada. “E eu nunca me casaria com ela”, pensou ao voltar a folha do álbum. “Mas vou me casar agora com uma que nem sei quem é.”

Foi buscar o cigarro. “Emília sabe, pergunto a ela!”, Mas perguntar, como? “Emília qual é o nome da minha noiva?” Ridículo. Ridículo. Seria denunciar sua loucura. Vacilou. Mas o que seria agora revelar loucura: recusar a realidade ou pactuar com ela?

Abriu de novo o álbum, apanhou ao acaso um retrato de Naná. Não, não, Naná era desquitada. “E este casamento vai ser na igreja, a noiva é solteira. Ou viúva. E com personalidade, eu jamais vestiria esse fraque se não fosse obrigado. Ela deve ter exigido todo o ritual, não abriu mão de nada, igreja, viagem de núpcias… E eu? Que papel estou fazendo nisso tudo?!” Ficou olhando para a carinha lavada de Rosana. Viúva. Mas porque Rosana?

Não, não, impossível, por que teria que ser ela? Tirou ao acaso um postal de dentro de um envelope: entre duas desconhecidas estava Jô com seus cabelos compridos e lisos, suas pernas compridas um pouco finas, talvez. A Jô. E se fosse a Jô? Um caso que se arrastara quatro anos. No último encontro – lembrava-se tão bem – comeram sanduíche de queijo, beberam vinho tinto e se deitaram lado a lado, ouvindo Mozart. Acho Mozart um chato, disse ela levantando-se e desligando o som. Ele chegou a esboçar um gesto para retê-la mas pensou: para quê? Viu-a vestir-se sabendo muito bem que ela não voltaria. Mas estava com sono. E fazia calor. Deixou-a partir. E se ela tivesse voltado? Guardou o retrato no envelope, não, não podia ser Jô, alguém lhe dissera há tempos que ela andava viajando com um vago diplomata. Fechou o álbum. E Cecília casada pela terceira vez. E Amanda, a suave Amanda das cantigas noitadas, dera de beber. E Regina já era mãe de cinco filhos. E Virgínia estava morta.

– O senhor quer agora o café? – perguntou Emília

Ele recebeu a bandeja. Encarou-a. Era evidente que ela não podia gostar da ideia de vê-lo casado, nenhuma empregada quer ter de repente uma patroa. Mas além desse ressentimento não haveria naquele sorriso qualquer coisa de maligno? Achou-a de um certo modo esquiva. Ambígua.

– Sabe as horas, Emília?

– Vinte para as dez. O senhor está atrasado.

– Posso me vestir num instante, você sabe.

– Sei, mas hoje é diferente…

Ele demorou o olhar no café fumegante. Negro, negro. Aspirou-lhe o cheiro. “ E se eu der um chute nesse fraque, não caso coisa nenhuma, não me lembro de nada, esse casamento é uma farsa!” Poderiam interná-lo como louco, “Enlouqueceu na manhã do casamento”, diria o jornal. “É que não sei também até que ponto me comprometi. Até que ponto.”

Bebeu o café. Encarou-a de novo.

– Então, Emília? Tudo em ordem?

Ela sorriu

– O senhor é quem sabe – disse enfiando as mãos no bolso do avental. – Ih, já estava me esquecendo, olha aí, chegaram mais estes telegramas.

Ele examinou o primeiro. O segundo. Nenhuma pista. O nome dela não estava mencionado nos votos ingênuos, convencionais. Telegramas de colegas de escritório. De parentes. Ao noivo. Ao noivo.

“Até que ponto me comprometi?”, repetiu a si mesmo sacudindo a cabeça que já começava a doer. Dirigiu-se ao banheiro. E só quando se cortou pela segunda vez no queixo é que reparou que se barbeava sem ter ensaboado a cara. Lavou o corte que sangrava se parar. E se disser não! Seria mais fácil, “chega, não caso coisa nenhuma, na pedi ninguém em casamento, não quero, não quero!” Mas teria que saber antes até que ponto tinha ido. Um jogo difícil, sem regras, sem parceiros. Quando deu acordo de si, já estava na hora da cerimônia. A solução era prosseguir jogando.

– Miguel! Miguel!

Era a voz de Frederico. Inclinando-se até o jorro de água, Miguel molhou mais uma vez o rosto. Os pulsos.

– Mas, Miguel… você ainda está assim? Faltam só dez minutos, homem de Deus! Como é que você atrasou desse jeito? Descalço, de pijama!…

Miguel baixou o olhar. Frederico era seu amigo mais querido. Contudo, viera buscá lo para aquilo.

Fico pronto num instante, já fiz a barba.

– E que barba, olha aí, cortou-se todo. Já tomou banho?

– Não.

– Ainda não?! Santo Deus. Bom, paciência, toma na volta que agora não vai dar mesmo tempo – exclamou Frederico empurrando-o para o quarto. – Acho que será o primeiro noivo a se casar sem tomar banho. Uma nota original, não há duvida.

– Nesse casamento tem outras notas mais originais ainda – murmurou Miguel. E quis rir mas os lábios se fecharam numa crispação exasperada.

– Você está pálido, Miguel, que palidez é essa? Nervoso?

– Não.

– Acho que a noiva está mais calma.

– Você tem aí o convite?

– Que convite?

– Do casamento.

– Claro que não tenho convite nenhum, que é que você quer fazer com o convite?

– Queria ver uma coisa…

– Que coisa? Não tem que ver nada, Miguel, estamos atrasadíssimos, eu sei onde é a igreja, sei a hora, que mais você quer? Nunca vi um noivo assim – resmungou Frederico atirando o cigarro pela janela. – E esse laço medonho, deixa que eu faço o laço.

Miguel entregou-lhe a gravata. Pensou em Vera. Vera! E se fosse Vera? Verinha, a irmã caçula de Frederico, a mais bonita, a mais graciosa. Seria ela? Apalpou os bolsos do colete. Mas o nome devia estar na aliança, pois claro, na aliança.

– E as alianças?

– Estão com sua tia, esqueceu? Mas mova-se homem, vamos embora.

Quando passou por Emília, ela enxugava os olhos na barra do avental. Tocou-lhe no
braço

– Você não vem, Emília?

– Não gosto de ver.

“Nem eu”, quis dizer-lhe. E num relance descobriu algumas caixas de presentes em cima da mesa. Os presentes, como não pensara nisso? O nome dela devia estar nos cartões dos presentes! Mas Frederico já o impelia para a rua, “Depressa, não fique assim parado!” Quando entrou no carro, procurou relaxar a crispação dos músculos. Afundou na almofada, fechou os olhos. O fraque era largo demais, o colarinho apertava e a cabeça já doía sem disfarce. Mas agora estava tranquilo, inexplicavelmente tranquilo. Deixava-se conduzir. Para onde? Não importava. Frederico sabia. E era Frederico quem estava na direção.

– A igreja é longe?

– Estamos diante dela – disse Frederico arrefecendo a marcha do carro. – Limpe esse corte que está sangrando, fique com meu lenço.

“Perto, não?”, pensou Miguel num sobressalto. E quanta gente, meu Deus, quanta gente. Ela devia ser muito relacionada para atrair tanta gente assim. Fechou o vidro da janela. Queria ser aquele menininho ali adiante que vendia agulhas, queria ser aquele gatinho preto que se sentara no último degrau da escadaria e lambia a pata, os olhos apertados por causa do sol, queria ser a sombra do gatinho, só a sombra. Guardou no bolso o lenço com a nódoa de sangue.

– O noivo, o noivo! – exclamaram os curiosos espiando para dentro do carro.

Num andar de autômato, Miguel foi caminhando em meio dos convidados que se agitaram, farfalhantes. O suor descia-lhe pelas têmporas. Sentiu os lábios secos, a boca seca. Enxugou a testa sentindo no braço, delicada mas enérgica, a pressão dos dedos de Frederico impelindo-o para o altar. O perfume das flores era morno como nos velórios. E a nódoa no lenço. Sentia-se enfraquecido como se todo o seu sangue e não apenas algumas gotas tivesse se esvaído naquele corte. Apalpou-o.

– Esse cheiro, Frederico. E essas velas.

– Que cheiro? Toda a igreja… Então não sabe? Ainda sangra? Esse talho, pega o
lenço.

Não respondeu. Viu tia Sônia num dramático chapéu preto e vermelho. Viu as gêmeas cochichando e rindo. Viu mais além – e o coração pesou-lhe – Naná ao lado dos dois meninos, viu-a rapidamente mas pôde sentir o quanto estava triste, “mas o que é isto, eu não sabia de nada, Miguel?! Por que você não me contou?” Viu Pedro conversando com alguns colegas de escritório, todos com aquele sorriso malicioso, detestável. Viu Amanda – estaria bêbada? – meio vacilante sob o chapelão de palha. E viu Vera. Num desfalecimento, Miguel quis se apoiar em alguma coisa ao seu alcance. Mas não havia nada ao alcance para se apoiar. A cabeça latejou com mais violência, Vera. Vera entre os convidados, a Verinha toda vestida de preto, não podia haver vestido mais preto, “não é você, Vera!?…”

– Ela acabou de chegar – avisou tia Sônia aproximando-se, afobada – está tão linda!

Escancarou-se a porta: no alto da escadaria a noiva foi surgindo lentamente, como se tivesse estado submersa abaixo do nível do tapete vermelho. E agora viesse à tona sem nenhuma pressa, primeiro, a cabeça, depois, os ombros, os braços… Tinha o rosto coberto por um denso véu que flutuava na correnteza do vento como a vela desfraldada de um barco.

Laura?

Ela foi se aproximando, obediente ao compasso grave da marcha. Miguel apertou os olhos míopes. Como era espesso o véu! Quem estaria por detrás, quem? Só vestido, só rendas e flores, umas flores tão úmidas, tão brilhantes. O vento soprando a nebulosa que deslizava pelo tapete, indevassável e diáfana. Leve. Subia os degraus do altar. Miguel adiantou-se. Deu- lhe o braço adivinhando-a sorrir lá no fundo dos véus. Não seria Margarida?

Por um momento ele fixou o olhar na mão enluvada que se apoiou no braço. Era leve como se a luva estivesse vazia, nada lá dentro, ninguém sob os véus, só névoa. Névoa. A sedução do mistério envolveu-o como num sortilégio, agora estava excitado demais para recuar. Entregou-se. No peito, o agudo grito da cantiga de roda da infância com a menina ajoelhada tapando o rosto com um lenço, “Senhora Dona Sancha, coberta de ouro e prata…” Ele avançou para a roda, entrou no meio onde a menina se escondia e descobriu-a, “queremos ver sua cara!”

O silêncio. Era como se estivesse ali à espera não há alguns minutos mas alguns anos. Muitos anos. A duração de uma vida. Quando ela apanhou as pontas do véu que lhe descia até os ombros, ele teve o sentimento de que estava chegando ao fim. A cantiga voltou mais próxima, “Senhora Dona Sancha!…” Quem, quem? O véu foi subindo devagar, tão devagar, difícil o gesto. E tão fácil. Atirou-o para trás num movimento suave mas firme.

Miguel encarou-a. “Que estranho. Lembrei-me de tantas! Mas justamente nela eu não tinha pensado…”

Inclinou-se para beijá-la.

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