Ainda não consigo crer que os alemães vão espontaneamente a leituras públicas. Não é possível que se chegue do trabalho e, em vez de fazer algo sensato, como tomar um drinque e convidar a vizinha para ouvir uns disquinhos, prefira-se uma leitura. Inconcebível para brasileiros, a não ser sob a mira de uma metralhadora. Na minha opinião, as plateias das leituras são parte de um complô. O DAAD deve ter um esquema especial para arregimentar espectadores, fazendo com que o artista se sinta importante e benquisto, com a vantagem adicional de que assim ele dispõe de anfiteatros para dizer suas bobagens e não vai dizê-las lá no escritório do DAAD. Fico imaginando os telefonemas.
– Alô, Berta, como vai, é a Barbara, do DAAD. O quê? Berta, se você desligar, eu conto a seu namorado que você se inscreveu no Tutti-Frutti, eu… Tudo bem, não conto, mas você vai ter que me ajudar. Você está ocupada na sexta à noite? Ah, é? E não dá para arranjar alguém para ficar em seu lugar? Quanto pagam pelo serviço baby-sitter? Dez por hora? Eu pago quinze. Sim, Berta, eu sei que aquela noite foi meio chata, eu sei que nem todo mundo gosta de ficar em silêncio total, enquanto um artista toca um sininho a cada dez minutos e sopra um apito de cachorro, eu sei. Não, não é o que recita em basco, será que você pode me deixar falar? O que belisca? Não, esse já foi embora, pode ficar tranquila. Não, o da próxima sexta-feira é excelente, é ótima pessoa. É, vai ter leitura na língua dele, mas rápida, porque ele não sabe ler direito e o resto do tempo quem vai ler é a tradutora alemã. Claro que ele vai estar vestido e não belisca ninguém! Não, Berta, este é o brasileiro, o da vaca é outro, é o uruguaio, o uruguaio também já foi embora. E vai haver um drinque depois da leitura, uns canapés, conversa… Não, vinte marcos é um assalto, você sabe que o máximo que nós pagamos foi vinte e cinco, assim mesmo porque era o mexicano do poema-ação que no final jogava guacamole na plateia, e nós achamos que era justo contribuir para a conta da lavanderia das pessoas. Está bem, vinte, nem mais um pfennig. Berta, você precisa ter um pouco mais de patriotismo, é um momento delicado para a Alemanha, precisamos trabalhar para a nossa boa imagem, precisamos ampliar nossas relações com todos os povos do mundo, precisamos aprender outras maneiras de ver a vida, precisamos… Ele não queima a Amazônia! Você acha que a gente ia trazer para cá alguém que estivesse queimando a Amazônia? Ele não belisca! Eu sei, Berta, mas eu não tenho culpa se o mexicano beliscou você na Porta de Brandemburgo, ele já tinha falado que considerava a Porta de Brandemburgo um monumento erótico e eu já tinha avisado a você para não sair com latinos, eles acham tudo erótico e acham que as alemãs são todas taradas, é um problema cultural que você tem de levar em conta. Não, ele vai ler uns trechinhos, coisa pequenininha. Está bem, Berta, vinte e quatro marcos, é minha última oferta! Mas, por esse preço, você bem que podia me fazer um favorzinho, é o seguinte: nós compramos doze exemplares de um livro dele… É, doze. É, eu sei, todo mundo achou isso, tanto assim que a editora dele deu uma festa e eu recebi a Comenda do Mérito da Indústria Editorial Alemã. Mas isso agora não interessa. O fato é que nós compramos esses livros e eu queria que você participasse de nossa Brigada do Autógrafo. É simples, você recebe um livro dele e um papelzinho com sugestões sobre coisas a dizer, “eu fiquei emocionadíssima quando li”, “foi o melhor livro da minha vida”, “gosto muito do décimo quarto capítulo”, coisinhas assim, você pode até improvisar, ele acredita em tudo e não se lembra de nada do que escreveu, não há dificuldade. Eu já disse que ele não belisca. É, pronto, é só isso. Você fica na leitura sem dormir, depois pega o livro dado por nós, escolhe uma frase para dizer e pede o autógrafo. Se ele não der uns quatro autógrafos, vai ser um horror, no dia seguinte ele aparece aqui chorando e dizendo que vai fugir para Bucareste e só melhora depois que eu pagar um sorvete para ele no Zoológico. Está bem, Berta, vinte e cinco marcos. É uma exploração, mas tudo bem. Então você aparece mesmo? Não vá falhar, hem? Escute, Berta, você não tinha uma tia velha que uma vez namorou um brasileiro que fugiu depois de pegar tudo o que ela tinha numa Sparkasse de Bremen e desde esse dia ela ficou maluca e fundou a Associação Bremenense de Ex-Namoradas de Brasileiros, que já reúne umas quinze velhotas? Não, não interessa que todas elas estejam em tratamento psiquiátrico, é até melhor. Será que não dava para você conseguir pelo menos umas cinco, ele adora velhotas e… Não, Berta, pare com isso, ele não vai beliscar as velhas! Está bem, trinta marcos, e não se fala mais nisso! Mas você garante umas cinco ou seis velhas, eu… Berta, não desligue!
Tenho a impressão de que Berta é uma magrinha de óculos que me pediu um autógrafo na Kulturhaus olhando para o outro lado e com o braço tão estendido quanto possível, mas não estou seguro. O de que estou seguro mesmo é que as leituras e palestras não são o meio mais eficiente para estreitar os laços teuto-brasileiros. E, num experimento de certa forma pioneiro, venho tentando transferir meu trabalho cultural para a área culinária, que é muito melhor que a literária. Modéstia à parte, tenho tido alguns êxitos e poderia mesmo dizer que, em certos círculos berlinenses, já corre minha fama de mestre-cuca. Mas a vida do embaixador cultural é muito difícil e, quando eu já estava animado, sofri um duríssimo revés, que talvez — ai de mim, de Barbara e de Berta — me obrigue a voltar às leituras. Este, porém, é outro episódio desta luta inglória, do qual os poupo agora, mas com o qual os ameaço depois.