O espartilho – Conto de Lygia Fagundes Telles

By | 21/12/2021

Tudo era harmonioso, sólido, verdadeiro. No princípio. As mulheres, principalmente as mortas do álbum, eram maravilhosas. Os homens, mais maravilhosos ainda, ah, difícil encontrar família mais perfeita. A nossa família, dizia a bela voz de contralto da minha avó. Na nossa família, frisava, lançando em redor olhares complacentes, lamentando os que não faziam parte do nosso clã. Uma orfãzinha como eu seria a última das órfãs se todas as noites não agradecesse a Deus por ter nascido no seio de uma família assim.

Não havia o medo, No princípio. E por que o medo? A casa do vizinho podia ter sido edificada sobre a areia mas a nossa estava em terra firmíssima, acentuava minha avó, ela gostava das citações bíblicas.

Que importavam as chuvas, os ventos? A primeira imagem que tenho de mim mesma é a de uma menininha de avental azul, instalada na almofada de veludo na sala de visitas com um vago cheiro de altar. Ao lado, minha avó com seu tricô. Tinha uma sacola da qual não se separava e onde levava tudo: chaves, óculos, dinheiro, agulhas… O casarão era enorme com seus quartos e corredores que não acabavam mais. Enfiando tudo na sacola, evitava a caminhada de voltar ao quarto para pegar a tesourinha. Organizado o programa do dia, ela ia para a sala, punha a sacola de seda no chão e retomava o tricô. Às vezes permitia que eu abrisse o pesado álbum vermelho de cantoneiras de praia. Muitos retratos já não tinham mais nenhum mistério, mas sobre outros respingava suas reticências: “Um dia, Ana Luísa, quando você for maior…”

Nunca chegou a me contar nada, tive que ir tateando, uma palavra aqui, um gesto lá adiante. Um objeto. Uma carta, peças que eu ia juntando enquanto esperava pelas tais revelações. O que teria acontecido com tia Bárbara, a bela tia de olhos amendoados e boca de quem ia mostrar os dentes, um pouco mais que o fotógrafo esperasse. Não esperou. Os dentes continuaram escondidos, os dentes e o resto. Fiz minhas perguntas e minha avó franziu a lesta: “Um dia ela saiu para comprar rendas e nunca mais voltou. Era um pouco nervosa, a querida Bárbara.” Sim, eu saberia de tudo direitinho quando crescesse. Saberia ainda o que aconteceu com outra tia misteriosa, a tia Ofélia. “Tomou veneno em vez de magnésia fluida, os vidros tão parecidos. Morreu um mês depois do casamento”, informou minha avó. Preferia falar sobre o avô com sua sobrecasaca negra e pastinha na testa. Posando sempre de perfil, as mãos apoiadas na bengala de castão de prata, o queixo forte ligeiramente apoiado nas mãos sonhadoras.

Morreu ainda jovem, de uma queda de cavalo. “Este aqui foi tirado uma semana antes do acidente”, acrescentou. E exibiu O avô elegantemente montado num cavalo também de perfil. ‘Era um homem justo. Que Deus o guarde.”

Deus devia guardar ainda o tio Maximiliano com seus maliciosos olhinhos verdes. “Toda a nossa família tem olhos verdes”. E minha avó fixou em mim os olhos verde-água. Uma sobrancelha do tio era bem mais alta que a outra, numa expressão que combinava com a dos lábios irônicos, de cantos para baixo.

Casara-se com uma inglesa. E se transformou no mais poderoso homem de negócios da época. Fundou fazendas, cidades.

Eu ficava pensando. Fundador de fazenda, vá lá, mas fundador de cidades?…

Cidade era uma coisa enorme, complicadíssima. Um só homem poderia construir aquilo tudo? Na página seguinte, vinha a carinha comente da inglesa de cachos e dentinhos separados. Tinham-se conhecido a bordo de um grande navio, quando tio Maximiliano voltava da Europa. Tiveram onze filhos. “Eram felicíssimos”, suspirou minha avó raspando com a ponta da unha os furos que serpenteavam por entre a gola de marinheiro da inglesinha. “Que pena, os bichos estão comendo…”

Os mortos já tinham sido devorados. Agora era a vez dos retratos.

Nem o laço de fita que prendia a cabeleira de tia Consuelo fora poupado. Só os olhos em forma de amêndoa permaneciam inteiros. Eu sabia que tia Consuelo tinha entrado para o convento e lá morreu pouco tempo depois. Mas por que o convento? Minha avó tomava seu ar nostálgico.

Vocação. Muito sensível a pequena Consuelo, uma santinha. Ao completar vinte anos, viu um anjo sentado aos pés da cama. Nesse dia disse, vou ser freira. Lembrava um pouco Santa Teresinha.

Quando Margarida resolveu contar os podres todos que sabia naquela noite negra da rebelião, fiquei furiosa. Ela disse podres e essa palavra me acertou como um soco, podre era podre demais, ah! carnes escuras, lixo, moscas… Se ao menos tivesse dito potins, minha avó diria potins. Mas Margarida não sabia francês. Nem eu.

É mentira, é mentira!, gritei, tapando os ouvidos. Mas Margarida seguia em frente: tio Maximiliano se casou com a inglesa de cachos só por causa do dinheiro, não passava de um pilantra, a loirinha feiosa era riquíssima. Tia Consuelo? Ora, tia Consuelo chorava porque sentia falta de homem, ela queria homem e não Deus, ou o convento ou o sanatório.

O dote era tão bom que o convento abriu-lhe as portas com loucura e tudo. ” E tem mais coisas ainda, minha queridinha”, anunciou Margarida fazendo um agrado no meu queixo. Reagi com violência: uma agregada, uma cria e ainda por cima, mestiça. Como ousava desmoralizar meus heróis? Não, não podia haver nenhuma sujeira de ambição e sexo nos corações espartilhados dos mortos do álbum. Eles usavam espartilho, até tia Consuelo com sua cintura de vespa e peitinhos estrábicos, cada qual apontando para um lado. Assim como os meus olhos.

Fiquei em pânico. E que história era essa de dizer que minha mãe era judia?

Até isso Margarida veio me trazer, por acaso alguém a poupou? Pois então escuta. Escutei.

Eu aprendi com minha avó a classificar as pessoas em dois grupos nítidos, as pessoas boas e as pessoas más. Tudo disciplinado como o material de um laboratório de química onde o Bem e o Mal (com letra maiúscula) não se misturavam jamais. Às vezes, o Diabo entrava sorrateiro nas casas e vinha espionar por detrás de alguma poria para saber o que estava acontecendo. Mas se via pairando um anjo no teto, enfiava o rabo entre as pernas e ia cabisbaixo arengar em outra freguesia.

Pensava assim, Queria que fosse assim. Tia Consuelo uivando de desejo na dura cama de um convento, tio Maximiliano fazendo dinheiro à custa da mal- amada inglesa, tia Ofélia se matando um mês depois do casamento e minha mãe com seu nome judeu e seu violino — mas que família era essa que ela me apresentava? Gente insegura. Sofrida. Que eu teria amado muito mais do que as belas imagens descritas pela minha avó. Mas tive medo ao descobrir o medo alheio.

Não podia aceitar o medo dessa gente e que parecia maior ainda do que o meu. Fiquei confusa. Aprendera a acreditar na beleza e na bondade sem nenhuma mistura. Tinha o Céu. Mas o Inferno era uma idéia remota, romanticamente ligada à idéia de mendigos e criminosos — toda uma casta de gente encardida, condenada a comer na vasilha dos porcos e a viver nas prisões. Lembrados rapidamente no meu Padre-Nosso. E esquecidos como devem ser esquecidos os pensamentos desagradáveis. “Higiene mental, menina!”, ralhou minha avó quando recusei um bife porque estava com pena do boi. Devia pensar em borboletas quando estivesse mastigando bois e em bois quando espetasse as borboletas com alfinetes, minha professora encomendara um trabalho sobre lepidópteros. “Não quero uma neta vegetariana, o vegetariano é sempre mórbido, Vamos, os bois nasceram para ser comidos, se não por nós, por outros.”

Aprendi desde cedo que fazer higiene mental era não fazer nada por aqueles que despencam no abismo. Se despencou, paciência, a gente olha assim com o rabo do olho e segue em frente. Imaginava uma cratera negra dentro da qual os pecadores mergulhavam sem socorro. Contudo, não conseguia visualizar os corpos lá no fundo e isso me apaziguava. E quem sabe um ou outro podia se salvar no último instante, agarrado a uma pedra, a um arbusto?… Bois e homens podiam ser salvos porque o milagre fazia parte da higiene mental. Bastava merecer esse milagre.

No livro de histórias que li escondido debaixo do colchão tinha o caso da mulher que amou um padre e virou mula-sem-cabeça. A metamorfose era inevitável. No caso de tia Bárbara teria acontecido um milagre? — foi o que em primeiro lugar me ocorreu quando Margarida contou no seu acesso de fúria que a bela senhora não foi comprar rendas e sim se encontrar com um padre jovem com o qual teve seis filhos. Se tivesse sete. o sétimo seria lobisomem. Estremeci. A severa dama do retrato era agora um cavalão descabeçado, tombando aos pinotes no abismo. “Ela sofria dos nervos”, tinha dito minha avó antes de passar depressa para outro assumo. Sobre minha mãe as referências também eram rápidas. Superficiais. Sob qualquer pretexto evocava-se a figura do meu pai com sua inteligência, seu humor. Eu não sabia o que era humor, mas se isso fazia parte do meu pai, devia ser uma qualidade. E minha mãe? Por que continuava isolada no seu cone de silêncio?

É mentira, Margarida. É tudo mentira — fiquei repetindo enrouquecida de tanto protestar. As largas tábuas do assoalho oscilavam sob meus pés. Avancei de punhos cerrados. Cala a boca! Chega! E continuei ouvindo a voz despedaçada prosseguir despedaçando todos.

Em meio do meu atordoamento, me ocorreu que Margarida ia escurecendo enquanto, falava, ela que chegara a ser quase branca quando se preparava para ver o namorado. Tinha os cabelos eriçados feito uma juba enlouquecida. Os lábios ficaram cinzentos: atirava-se às palavras como quem se atira ao fogo.

Falou também sobre suas origens, ah, não tinha ilusões. Falou na avó, na preta Ifigênia. Desde mocinha Ifigênia engomava a roupa da família, o ferro atochado de brasas, era a idade da goma. As camisas lustrosas. As saias lustrosas, duras. Quando ela engravidou, tio Maximiliano foi mandado às pressas para a Europa, todos sabiam. E ninguém sabia nada. Com a mesma pressa com que o jovem embarcou foi providenciado para ela um casamento. O escolhido era um agregado da família (tantos agregados!) que era sargento e gostava de tocar violão. O menino nasceu de olhos verdes. O sargento sumiu quando a criança morreu de pneumonia. Pronto, devia ter dito minha avó, tudo está resolvido. “Deus sabe o que faz.” A segunda gravidez de Ifigênia já foi tranqüila, reapareceu o sargento. Nasceu uma menina. “Vamos batizá-la com o nome de Florence”, sugeriu meu avô, o da pastinha. Ele linha paixão pelos romances de Florence Barclay. Minha avó se opôs. “Imagine, um nome aristocrático para a pobrezinha!” Se era para recorrer a romances, por que não A escrava Isaura”?

Ifigênia e seus ferros de engomar. Tinha uma “dor no peito que respondia nas costas”. Quando fechou os olhos espiritualmente reconfortada, Isaura era ainda menina. Foi mandada para o asilo, que lá acabasse de crescer até chegar ao ponto de poder trabalhar. Não trabalhou. Chegando a idade de recompensar a família por tamanhos transtornos, ficou tuberculosa, igual à mãe. No sanatório, apaixonou-se por um enfermeiro polonês, chegou a ler alta quando engravidou.

Morreu um mês depois do parto. Minha avó se horrorizou. “Mas essas moças acabam sempre perdidas? Perdidas e doentes. Ainda por comodidade”, teria dito. Era primavera, o jardim estava cheio de margaridinhas azuis quando chegou a criança em casa. “Vai se chamar Margarida”, determinou minha avó. Levou-a para um orfanato com a condição de ir buscá-la um dia. Quando Margarida completou dez anos.

Exigiu-a de volta, eu precisava de uma pajem. E a nova criada da casa precisava de alguém para ajudá-la a lavar e cozinhar. No baú de Margarida veio um retrato do pai polonês que há muito desaparecera completamente: um homem louro e forte, de queixo quadrado e riso inocente. Os braços cruzados e o avental branco. Margarida pregou o retrato com tachas nu parede do quarto, ao lado da cama. “Não sou parecida com meu pai?” Quando brigávamos, eu dizia que ela era a cara de Isaura. “Mas se você não conheceu minha mãe!”, protestava. Mas conheci sua avó, mentia-lhe com candura. Ela então entrava debaixo da cama e começava a chorar.

Depois do jantar. Margarida foi ao meu quarto e pediu o lápis emprestado. “Depressa, aquele seu lápis preto, quero pintar os olhos!”

Era sábado. Dei-lhe o lápis. Sua beleza insólita revelou-se para mim naquele instante em que se preparava para o primeiro encontro de amor.

Eu desenhava um vaso de orquídeas. Mas minha avó vai deixar você ir?

Respondeu num sussurro: “Ela não sabe, vou escondido!” E suplicou que lhe deixasse usar minha água-de-colônia. Foi nesse instante que minha avó entrou no quarto. Sentou-se. Tirou o tricô da sacola. Baixei os olhos para o desenho das orquídeas: cedo, bem cedinho eu já lhe passara a informação, a Margarida está namorando o filho do doutor Peninha.

Minha avó fazia o doce de goiaba e pediu para que eu provasse, não estaria faltando açúcar? A memória do cheiro das goiabas esmagadas no tacho de cobre voltou a me envolver com seu hálito ardente, Era esse o cheiro da traição.

Quando viu a avó, Margarida recuou com o vidro da água-de-colônia que tinha acabado de abrir. “Margarida, pode ir lavando a cara que você não vai ver esse moço. Ele é branco, querida. De família importante. Eu seria uma criminosa se consentisse nesse namoro.”

Sua primeira reação foi negar. Mas logo percebeu que era inútil, a outra estava muito bem informada. Começou então a suplicar, puxando os cabelos e chorando, chegou a deitar no chão. Continuei desenhando e borrando o desenho com o suor da minha mão. “A gente se ama.

Madrinha, a gente se ama!” Minha avó guardou as agulhas na sacola e levantou-se. Era o aviso, assunto encerrado. Resmungou antes de sair. “E como insiste!” Nessa hora vi no espelho minha cara comprida. Os olhos naquele olhar baixo, enviesado. Margarida agora dava murros no assoalho. “Bruxa. Madrinha é uma bruxa!” Não sou boa, pensei. Sou má.

Fiz uma careta maligna, amiga e confidente. Inimiga e delatora. Agora não podia mais parar até ter certeza de que o padre me negaria a comunhão. Voltei à mesa. As orquídeas que desenhei me pareceram monstruosas. Rasguei a folha e sentei no chão ao lado de Margarida.

Dei-lhe meu lenço para enxugar a cara. Não fique assim, querida, pedi.

Minha avó tem razão, agora você vai arrumar um outro namorado que seja assim da sua cor, presta atenção, da sua cor.

Ela me devolveu o lenço e enxugou os olhos na barra da saia.

Passou as mãos pela cabeleira eriçada. Estava rouca de tanto chorar: “Você é igualzinha, disse. Igualzinha.” No começo falou com brandura mas aos poucos foi se exaltando. Fechei depressa a porta. Você está gritando, Margarida, minha avó vai ouvir! Mas ela prosseguia desencadeada, a cara lívida. Foi então que disse que minha mãe era judia.

Mentira, mentira! fiquei repetindo. Ela se levantou feito uma labareda.

Mentira?!… Fiquei encolhida, a mesma náusea do Domingo de Páscoa, quando comi um enorme ovo de chocolate. Ela sabia tudo.

Fiquei ouvindo até o fim. Em meio do pesadelo que tive esta noite vi passar numa voragem tia Contudo, tio Maximiliano, tia Ofélia… Tia Consuelo vestia seu hábito todo rasgado e dançava em prantos, agarrada a um homem. Tia Ofélia corria ao redor da cama, a mão escondendo os seios, a outra, escondendo o sexo, “Essa sua tia era louca ao contrario, tinha horror de homem, fugia espavorida do marido.” Visualizei esse marido correndo atrás dela. “Pára com isso, Ofélia, pára com isso!” Senti na boca o fervilhar da magnésia fluida que ela bebeu de um só trago, não é magnésia, tia, é veneno! Degolada e nua, vinha agora tia Bárbara, metade mulher, metade cavalo, “Vou comprar rendas!” Desviei-me de uma batina negra que mal cobria os cascos fendidos de um fauno e fui de encontro a minha mãe. Ela veio vindo com seu violino debaixo do braço e cabeleira ressequida, igual à do judeu David. da loja de antigüidades. Na Alemanha eles estão pisando em judeus como em baratas!…

Acordei de madrugada. A voz de Margarida ressurgia estraçalhada e ainda assim, nítida, repetindo que minha avó não foi ao casamento do filho porque a moça era judia. Na Alemanha a nossa pequena Sarah já estaria liquidada… Mas quem te contou tudo isso?, perguntei e no escuro a cara de Margarida era um cogumelo úmido, escorrendo tristeza: “Fiquei sabendo, meu bem. Sei de mais coisas ainda.

Coisas…” Acendi a luz. Da véspera ficara apenas uma pequena mancha de lágrimas na larga tábua rosada do chão. Comecei a tremer. Minha mãe, judia? Mas era horrível ser judeu, todos viviam repetindo que era horrível. “Ainda prefiro os pretos”, ouvi minha avó cochichar a uma amiga. E leu alguns trechos de um discurso de Hitler, publicado numa revista. A amiga me viu e teve um gesto qualquer que não completou.

Então minha avó me fez uma carícia: “Não tem perigo, ela é Rodrigues até no andar.”

Entendia agora cenas palavras. Certos silêncios. Entendia principalmente a insistência com que se referiam às minhas semelhanças com meu pai. De resto, na minha memória ficara pouco de ambos: tinha a idéia de que ele era um homem alto e risonho. Quanto à minha mãe. Meio vagamente eu me lembrava de uns olhos pálidos — seriam azuis? – e de umas mãos louras, assustadas. Mais forte era o perfume do creme que ela usava nas mãos, minha prima usava esse creme e de repente tive quase inteira a sua imagem, tal como me apareceu pela última vez, de vestido lilás, segurando o violino, Seria bonita?

Certamente não, bonito era o pai. Devia ter medo, isso sim. Mais forte do que tudo eu sentia nela o medo e foi com a tinta amarelo negra desse medo que fui esboçando seu perfil. Sarah Ferensen. Sarah e Marcus Rodrigues, estava gravado no mármore do túmulo.

Morreram num desastre de trens. “Mas não se usa mais ninguém morrer em desastre de trens. E justo seu filho e nora…”, comentou uma amiga da avó. Essa amiga tinha os dentes azulados de tão brancos, fiquei impressionada com a perfeição dos seus dentes. Margarida riu de mim: “Tudo postiço, bobinha.” E acrescentou que minha avó vivia dizendo que essa amiga era detraquê, chegou a ir ao dicionário, o que queria dizer detraquê? Mas não encontrou essa palavra. A amiga podia mesmo ser meio idiota mas o comentário que fez sobre meus pais gravou-se em mim, inesquecível como sua dentadura. Mas não se usava mais esse tipo de morte!…

Pois a moda devia ter voltado porque o trem descarrilhou e ambos foram encontradas juntos debaixo da engrenagem, contou minha avó.

Os ossos ficaram moídos mas as caras estavam intocadas. Com essas mesmas palavras, contei a Margarida o desastre mas ela já conhecia até os pormenores. Impressionou-se com a palavra engrenagem. Foi ao dicionário que ficava na primeira prateleira da estante envidraçada.

Desde que aprendeu a ler, apaixonou-se pelas palavras, principalmente por palavras novas, de significado desconhecido.

Tomava nota da palavra misteriosa, guardava o pedaço de papel no bolso. “E agora, ao Pai-dos-Burros!”, anunciava na maior excitação.

Tamanha curiosidade enervou minha avó: “Essa menina já está parecendo uma intelectual. Quanto mais souber, mais infeliz será.” Para não chamar mais a atenção da Madrinha, passou então a fazer suas consultas de modo disfarçado. Estava triunfante quando veio me anunciar que naturalmente ela quis dizer ferragem e não engrenagem.

Debaixo das ferragens, os dois enlaçados.

Sarah Ferensen. O F com um ponto, não era Ferreira, não era Fernandes, era Ferensen. Metade do sangue de Margarida era negro mas a metade do meu.

Fechei a janela. Fechei os olhos. Explicava-se assim o silêncio em torno da minha mãe. Sua ausência no grande álbum, a avó chegou a justificar. “Sarah detestava tirar retratos”. Com a ponta do dedo, desenhei um J no vidro embaçado pelo meu hálito. Apaguei-o.

Teria agora que fazer como Margarida? Apagar as pegadas da minha mãe — também eu?… Com quatro tachas, pregara o retrato do polonês na parede. Com três pregos eles tinham crucificado o Jesus. Podiam ter escolhido o ladrão.

Escolheram a ele. Condenados por isso a errarem para todo o sempre sem parada nem sossego, tamanha avidez. Fechei na mão o coraçãozinho de ouro que era de Margarida. Nela. a metade maldita era evidente. E em mim? Fiquei dando voltas ao redor do quarto. Eu tinha uma metade ruim, aquela que intrigava, bajulava. Traía.

Nessa metade estava o medo. Seria esse medo que me fazia assim dissimulada?

Fui ver minha avó. Estava na sua cadeira dourada, as agulhas se chocando por entre a malha apertada do tricô cinza-chumbo, duro feito uma cota de aço. Desde que o marido morreu nunca mais tirou o luto que se atenuava naquele cinza pesado. Envelheceu tudo o que tinha de envelhecer e agora permanecia estagnada no tempo, os cabelos brancos.

A pele descorada sobre a leve camada de talco com perfume de violeta.

Imutável como as próprias conservas que preparava nos grandes boiões de vidro. A cintura ainda fina. Os seios abatidos sobre o espartilho.

“E a Margarida? Amanheceu mais calma?” Fiquei olhando para minha avó com seu sorriso mineral, frio como se tivesse sido cavado na pedra. Sem faltar o talco para absorver uma possível umidade. Assim começávamos os diálogos feitos de perguntas curtas. Respostas curtas como os pontos de tricô tecendo a malha do entendimento. Agora as palavras me intimidavam, mais perigosas do que as centopéias com suas dezenas de patas fervilhando em todos os sentidos — para onde me levariam?

Parou de chorar, respondi e abri o álbum de retratos com uma emoção diferente. O avesso dos retratos, esse estava agora comigo.

Descobria que as mulheres do álbum estavam tão apavoradas quanto eu. A respiração curta. A expressão desconfiada, na expectativa — do quê?

Enxuguei as mãos úmidas no vestido. O suor brotava amarelo-esverdeado debaixo do meu braço, nos vãos dos meus dedos. A cor do medo. Do mesmo tom sépia dos retratos que se colavam uns nos outros, obstinados. Cúmplices.

“Alguma novidade, Ana Luísa?”, perguntou minha avó com seu ar distraído. Eu estaria salva se naquela manhã a enfrentasse. E minha mãe, quero saber a verdade sobre minha mãe, vamos avó, quero a verdade!

Em vez de alimentar sua gula de intrigas, acabaria com aquela farsa que estava me aniquilando, falaríamos de igual para igual. Fui esmorecendo, recuando só em pensar na pergunta-chave: minha mãe era judia? Senti a cara arder. Jamais poderia interpelar aquela avó-rainha. Que de resto não me responderia com um sim ou não, seu estilo era impreciso. Dúbio.

Acabaria por fazer vagas considerações sobre o perigo de se abrigar estranhos em casa participando da nossa privacidade. Os invasores.

Não falaria diretamente em Margarida mas aproveitaria o título do livro que estava lendo e que fazia sucesso no momento. As relações perigosas.

Hum! esses agregados que escutam detrás das portas, que abrem cartas.

Gavetas. Sabia que Margarida fora a fonte onde bebi a água escura mas se recusava a falar diretamente no assunto. Preferia as referências meio esgarçadas sobre os dissabores pelos quais passavam as Famílias assim grandes. Os parentes perfeitos eram perfeitos e os imperfeitos só podiam ser estrangeiros ou loucos, evidentemente.

Evidentemente, eu disse para mim mesma. Fiz um aceno e fui saindo. Vou fazer minha lição. Ela ainda insistiu. “Nenhuma novidade?”

Corri de leve os dedos pelo teclado, o piano estava aberto. Fui para o jardim.

Encontrei Margarida descalça, regando as plantas. Na cara lavada, a expressão de sempre, um pouco mais fria, talvez. Essa roseira secou?, perguntei. Ela me olhou através do leque de água cintilante, trespassado de luz. “Ainda não se pode saber.” Sua voz pareceu-me vir de muito longe. Estávamos próximas como há pouco eu estivera próxima da minha avó. Contudo, se estendêssemos os braços não nos tocaríamos.

Tirei a corrente do pescoço e estendi-lhe o coraçãozinho de ouro. Você me emprestou. Margarida. É seu, estou devolvendo. Ela desviou o olhar indiferente. Era como se eu lhe tivesse estendido algum daqueles pedregulhos do chão. “Não quero mais isso, fica com ele.” Pensei em pedir-lhe perdão, fui eu sim! fui eu que contei mas não faço nunca mais, me perdoa, me perdoa! Voltei para o meu quarto. No almoço, senti minha avó irritada, por que eu mastigava fazendo barulho? E por que não segurava direito a faca? Escondi as mãos no regaço e sem saber por que me lembrei da minha mãe empunhando o arco do violino.

Quando Margarida trouxe a bandeja do café, senti os olhos cheios de lágrimas, agora estávamos sós: minha avó, ela e eu. Ainda na véspera, durante o café da manhã a gente trocava olhares e se falava e ria mesmo em silencio, como os mortos do álbum. Indevassáveis. Felizes. Minha mãe era apenas o vago retrato de uma moça alourada que se chamava Sarah e gostava de música. Tão segura eu me sentia sendo simpática, cordial. Fácil a hipocrisia. Tão fácil a vida. Com que naturalidade me empenhava em conquistar as pessoas, fortalecida no meu instinto de fazer sucesso naquela roda fechada. Como era rendoso o cálculo que vinha mascarado de improvisação. Envelhecer é calcular, aprendi mais tarde. E agora, uma menina ainda — mas como se desenvolvera tanto esse cálculo em mim? Dizer o que as pessoas esperam ouvir, fazer (ou fingir que fazia) o que as pessoas queriam que eu fizesse. Já nem sabia mais quando era sincera ou quando dissimulava, de tal modo me adaptava às conveniências.

Margarida chegava a se espantar, mas eu estava falando sério? Como podia dizer a moça do chapéu de palha grená que seu chapéu era bonito? Sentia uma certa vergonha quando ela me alertava. Mas para não me desmoralizar, sustentava a farsa.

“E o que você ganha com isso?”. Margarida me perguntou certa vez quando me apanhou em flagrante, eu bajulava uma velha dizendo que parecia ter menos idade, muito menos do que aquela que confessou.

“Mas ela está caindo aos pedaços, parece ter o dobro!”, zombou Margarida. Fiquei quieta. Com sua franqueza, ela era rejeitada por todos mas eu não provara ainda da rejeição: era a menina delicada, pronta para bater claras de ovos ou recitar nas reuniões de sexta-feira, quando minha avó convidava as amigas da Cruz Vermelha para as chamadas tardes de caridade. Passavam horas tricotando ou costurando roupas para asilos e orfanatos, reunidas na grande sala de jantar onde estavam instaladas as máquinas de costura. O rádio ligado, transmitindo notícias do mundo prestes a mergulhar na Segunda Grande Guerra. Quando chegava a hora da transmissão de programas musicais, aproveitavam para conversar. Falavam todas ao mesmo tempo. Só minha avó conseguia ordenar um pouco os assuntos que acabavam sempre em política. “É o homem do século!”, dizia minha avó. Falava de Hitler.

Apesar do respeito que tinham por ela, uma ou outra visitante ousava discordar. “Um líder brilhante, sim, mas já está ficando insuportável com essa mania de racismo! Coitados dos judeus, eles também têm direito de viver, não têm?”

Minha avó lançava em redor seu olhar astuto: num grupo tão variado era impossível não ter judias. Fazia comentários amenos, Ah, meu Deus! não vamos mais mexer com política. Desligava o rádio e me chamava depressa. “Minha neta agora vai recitar”. Eu entrelaçava as mãos na altura do estômago, unia os pés e levantava a cabeça, como aprendera com uma tia que tinha um curso de dança e declamação. Duas ou três poesias não muito longas enquanto lá na cozinha era preparado o chá nos grandes bules de prata. Quando começava o discreto ruído das xícaras, era a hora de interromper, o aviso vinha através de um discreto pigarro da minha avó. “Pronto, querida, agora vá tomar o seu chocolate”, com o bule de chá vinha um outro com chocolate. Despedia-me polidamente das senhoras que me aplaudiam na medida exata, sem exagero. Dizia-lhes uma ou outra palavra amável, de preferência um breve elogio sobre algum detalhe do vestuário, aprendera com minha avó a importância de tocar nesse detalhe, o remate de um punho. Um broche. Um botão, elogiava esse botão. E saía afetando não ouvir os comentários que ficavam para trás. “menina encantadora!”

Eu precisava ser encantadora. Já era o medo mas esse medo me estimulava a amar o próximo, ou melhor, a fazer com que o próximo acreditasse nesse amor. Recebia em troca um juízo favorável e era nesse juízo que me sustentava. Estava aí a resposta à pergunta de Margarida, o que eu ganhava com isso? Essa unanimidade de opiniões e que beirava a admiração. Agora me via esvaziada, rodando pela casa como se procurasse por mim mesma, por aquela outra — mas o que estava acontecendo comigo? Por que perdi de repente a graça da representação?

Nessa noite, depois do jantar, minha avó quis jogar xadrez. Fui buscar o tabuleiro e coloquei as pedras, as pretas eram sempre as minhas. Não tinha a menor dúvida de que ia jogar mal. Viver mal. Fui perdendo as peças todas, uma por uma. Minha avó ficou impaciente: Por que não avança esse cavalo? Aprenda a lutar, menina, vamos, reaja! A rainha branca atravessou o tabuleiro e encurralou meu rei. Não tive por onde escapar. Xeque-mate. Propus uma segunda partida. Que ela recusou, eu estava jogando sem a menor convicção.

Sem competição, era uma jogadora conformada.

Apanhei meu bordado. Quis dizer alguma coisa divertida que a fizesse sorrir, quis tagarelar sobre pequeninas perversidades e não conseguia. Era como se minha agulha de linha vermelha que agora varava o pano, no mesmo movimento de ziguezague, tivesse costurado minha boca. Ela então tomou a iniciativa. Mas essa grande tolice. De Margarida, é claro. Querer namorar o filho de um juiz, que loucura.

“Uma desfrutável!”, rematou ela. Desfrutável. O que seria desfrutável?

Não podia mais pedir a Margarida que consultasse o dicionário. Fiz um comentário morno, ela namorava esse estudante já fazia algum tempo.

Minha avó bebeu o chá de erva-cidreira que esperava na xícara. Falou baixinho, mais para si mesma: “É no que deu. Isso de ficar lendo esses romances enjoados de moça pobre que se casa com o primo rico, eu sabia que essa mania de leitura não ia dar certo. Passo a chave na estante e acaba essa brincadeira.”

“Você mudou muito, Ana Luísa. Estou abismada com essa mudança tão repentina”, disse minha avó enquanto podava uma roseira.

Estávamos no jardim. Inclinei a cabeça para o ombro num movimento de débil interrogação, mudei?… E fiquei pensando, ela disse abismada.

Abismada significava estar num abismo? Outra palavra que eu teria compartilhado com Margarida se fosse ainda o tempo de compartilhação. Mas a avó prosseguia: fazia tudo por mim, os melhores colégios, as melhores roupas. E eu naquela apatia, como se a evitasse.

Fechei minha gramática enquanto ia ouvindo suas críticas com o rumor do aço da tesoura que cortava implacável. Vi no chão os galhos caídos, tão viçosos quanto os outros. Como ela soubera distingui-los? Qual seria a lei dessa escolha? Fui me encolhendo no banco de pedra. Assim me cortaria também se não lhe provasse minha força.

“Chego a pensar que você está com medo de mim. Por que esse medo?”, perguntou amaciando a voz. Voltei a inclinar a cabeça para o ombro na desolada mímica da submissão. Ela não entendia que era preciso não ter medo para poder justificar o medo. Guardou no cestinho a tesoura e as luvas. O comentário foi num tom distraído, como se falasse sobre o jardim: “Interessante… Você está muito parecida com sua mãe.”

Minha cara latejou sob a violência das pancadas do sangue.

Escondi-me atrás do livro. Agora as letras despencavam pela página abaixo, tortas. Amassadas. Deixei-as escorrer até pingarem no meu avental.

O chá. Uma ou outra das senhoras do grupo de caridade ainda insistia quando eu entrava com o prato de biscoitos: “Então, queridinha?

Não vai mais recitar para nós?” Eu sacudia a cabeça, tão constrangida que só podiam se sentir aliviadas com esse corte no programa. Que graça podia ter a menina com aquela cara de macaco exilado lembrando que o amor era um vaso de cristal, ah! se a ponta de um leque bate sem querer nesse vaso.

“É da idade”, explicava minha avó. “Ela está chegando a adolescência, idade ingrata.” E a conversa enveredava para as empregadas domésticas. “Essas criadas insuportáveis!”, gemia a senhora da boina de veludo. E a moda?, alguém lembrava. Grandes demais os enchimentos nos ombros do tailleur, influência dos uniformes militares.

“Acho um encanto os casacos com botões dourados, comprei um ontem que é igual ao de um oficial de marinha!”, lembrou a senhora grisalha com seu casaco de lontra e pulseiras de ouro que tilintavam nervosamente. O locutor no rádio eslava exaltado, a guerra parecia iminente. Minha avó baixou o volume, quis retomar o assunto de sucesso, as criadas. Mas a mulher dos cabelos cor de pinhão queria falar sobre Hitler. O círculo mais próximo concordou, era um homem genial mas meio louco, e se estalasse essa guerra que já parecia inevitável?

Entraríamos nela? “É evidente!”, exclamou a mulher da boina. Não dormia mais só de pensar que os filhos poderiam ser chamados, agora que Getúlio Vargas estava com os Aliados. “Tenho três filhos homens, por acaso vocês sabem o que isso significa?”

Minha mão tremia quando servi o chá à jovem enfermeira com uma longa capa azul-marinho nos ombros e a pequena cruz de feltro vermelho na louca de linho branco. A conversa ia tomando o rumo detestável. Era como no jogo do está quente, quando Margarida saía correndo para procurar o bom-bom que eu tinha escondido. Quando ela se aproximava do ponto suspeito, eu anunciava o perigo e ela se atordoava na excitação, está ficando quente, mais quente ainda! Está fervendo!…

Mas as regras desse jogo não estavam nas minhas mãos. Pedi a Margarida que fosse buscar mais chá e ela obedeceu: parecia incrivelmente satisfeita no seu avental preto de gola de algodão branco.

Era a hora do assunto medonho, quando a velhota do casaco de pele cor de caramelo começaria o ataque a Hitler, minha avó teria apenas que dar seu apoio. E eu teria que sair imediatamente da sala mostrando a todos que assumira o Ferensen da minha mãe, sairia pisando duro e batendo a porta atrás de mim, me orgulho de ser judia! Que saibam todos que se não sair agora, nunca mais poderei levantar a cabeça, nunca mais. Ela vai falar, pois que fale! E eu vou largar aqui este bule e vou sair porque não admito que ataquem os judeus na minha frente!

Não foi a velhota quem começou nem houve qualquer interferência da minha avó, que cortava as fatias do bolo: falou foi a jovem de pulôver verde- musgo e colar de pérolas, o chapeuzinho de feltro num tom mais escuro, varado por um alfinete de pérola em formato de pêra. A voz aguda pairou sobre todas as outras: “Nesse ponto, estou com a Alemanha. Tem então cabimento? Judeu é judeu e já disse tudo!”

Senti a garganta queimar. Contraí-me inteira, sem poder segurar o bule que larguei na mesa. Margarida veio com seu sorriso o apanhou o bule. Fui indo atrás dela com a pilha de pratinhos para o bolo. queria gritar, morrer e fui seguindo com os pratinhos de porcelana nas mãos.

Minha avó olhou nos meus olhos. “Deixa aí os pratos, filha. Eu mesma sirvo.” O apoio inesperado comoveu-me tanto que cheguei a vacilar, segurei no espaldar da cadeira. Ela sabe que eu sei. Apenas a situação era outra: o ataque vinha de uma estranha, sua neta estava sendo agredida e agora já consciente da agressão. Tinha que ficar do meu lado.

E, de um certo modo, do lado do filho até na morte solidário a essa Sarah Ferensen sob as ferragens do trem. Comecei a comer o bolo que era de chocolate e comi o pudim e enchi a boca com biscoitos e mordi um sanduíche. Eu também estava debaixo da engrenagem. Mas viva.

Nessa noite. Margarida me olhou mais demoradamente. Havia nos seus gestos uma delicadeza triste. Disse apenas. “Tenho um outro namorado, pode ir contar a ela. Quer o nome dele?”

Sacudi a cabeça pesada de vergonha, tanta culpa num só dia. O compridíssimo chá. E agora a acusação que me varava feito seta. Não, Margarida, nunca mais vou fazer isso, acredite em mim! Enterrei a cabeça no travesseiro, acredite em mim! Vi que tirou da gaveta uma camisola limpa, estendeu-a ao lado do meu travesseiro. Deve ter se voltado da porta para me olhar uma ultima vez. Quando fui chamá-la no dia seguinte, encontrei seu quarto vazio. A cama ainda feita e o quarto vazio. Na parede encardida, os furos das tachas arrancadas. E a marca retangular do retrato do polonês.

Minha avó recebeu a notícia com uma calma que me assustou, era como se já esperasse por isso. Cravou em mim os olhos de um verde-turvo e continuou movendo suas agulhas. De modo obscuro, me senti responsável por essa fuga. Ficamos algum tempo em silêncio ali na sala com a mesa posta para o café da manhã. Engoli o café com leite fervendo. Comecei a tossir a tosse do pavor.

“Fugiu com ele, é claro, com esse rapaz…”, começou minha avó, estalando os dedos. Sua mão roçou pelo meu ombro num gesto impaciente: “E evidente que você sabe e não quer falar. Não importa.

Tornarei as providências. Menina pretensiosa. Agora quero uma preta retinta, com a tradição da raça. Princesa Isabel, pois sim! Queria que vivesse ainda para ver em que situação ficamos com os seus sentimentalismos.”

A nova empregada chamava-se Joaquina. Minha avó terminou o longo casaco de tricô e comprou a lã para a manta verde-musgo. Foi quando a guerra começou. A guerra, eu ficava repetindo a mim mesma.

E ficava olhando o calmo céu de maio, sem nuvens, sem aviões. O nosso casarão na paz do Senhor, como costumava dizer minha avó. A novidade maior é que minhas duas tias apareceram uma tarde com farda de Voluntárias da Defesa Passiva Antiaérea. “Não sejam ridículas, por favor, não banquem as idiotas!”, exclamou minha avó quando conseguiu falar. “Mas se houver um ataque”, disse tia. Jane tirando o quepe. Alisou os cabelos curtos, duros de gomalina. “Temos que preparar a população para um possível ataque aéreo!” Tia Dulce fechou a cara, concordando com um movimento de cabeça, pois não estávamos em plena guerra?

Não tirou o quepe nem as luvas brancas, magoada com as palavras da irmã mais velha. Ameaçou ir embora enquanto passava as pequenas mãos na altura dos seios achatados sob a túnica cinza, como se quisesse se certificar de que eles ainda continuavam ali. “Por favor, não venha com ironias. Somos voluntárias, querida. Um pouco mais de respeito!”

Minha avó se desculpou, não quisera ser rude, imagine. E fez uma pausa para as amenidades, como era do seu estilo. Mandou servir sorvete de creme avisando que fora feito em casa. E onde estavam os sequilhos? A broa de milho. Só então recomeçou com voz adocicada, como se lidasse com duas criancinhas: “Não vai haver nenhum ataque, minhas queridas.

Estamos tão longe do cenário, longe de tudo, eles não vão nem tomar conhecimento aqui da América Latina. E mesmo que tomassem, o que vocês poderão fazer para defender essa população?…” Ficou olhando da janela as irmãs atravessarem o jardim no seu passo marcial. Arqueou as sobrancelhas. E recolheu o apito que lia Jane esquecera na poltrona.

“Voluntárias da Defesa Antiaérea. Duas detraquês.”

A guerra estava lá longe, disso eu também sabia. Mas havia os jornais. As revistas. Os documentários nos cinemas. E o rádio com aquele locutor histérico metralhando as informações. Milhares de judeus de mãos úmidas escavam sendo massacrados. Lá longe. Chegavam até nós os horrores que aconteciam dentro e fora das cidades mas tudo de mistura com o anuncio de vitórias retumbantes. Derrotas. E os hinos exaltados. As bandeiras. Passei a detestar os jornais. A evitar o noticiário no rádio. Fechei-me no quarto com meus livros. Com meus discos.

Ouvia música e lia, lia sem parar. Minha mesada ficava quase inteira nas livrarias. Inventei fazer um curso de línguas mais para justificar minha porta sempre fechada. Preciso estudar, avó. Os exames, eu justificava. E ficava horas estendida nu cama, comendo tabletes de chocolate.

Passava a mão nos meus objetos conhecidos, sem surpresas, sem imprevistos. Abraçava meu pequeno urso de pelúcia puída e dormia com a cara encostada no seu focinho. Às vozes, falava no ouvido da minha boneca de vestido de tafetá rosa antigo, completamente desbotado. Só queria usar sapatos já gastos, afeitos aos meus pés. E roupas de cores tímidas, que não despertassem a atenção de ninguém — ah! se pudesse ficar sempre assim quieta, sem ser notada pelas gentes, pelos deuses. Nos feriados, metia-me em cinemas com os meus chocolates, mas na hora dos documentários de guerra, fechava os olhos.

Minha avó parecia se controlar para não perder a paciência “Essa guerra, mesmo assim distante, tem perturbado algumas pessoas”, disse mais de uma vez. E me encarava. Eu não respondia. Quase não nos falávamos. Ela me via sair e entrar com meus livros mas não fazia perguntas, queria mostrar que tinha confiança em mim. Não fiz nada de errado, avó, eu disse quando inesperadamente me interrogou certa tarde. “Eu sei disso”, respondeu. E através de uma ou outra observação acabou por confessar que me achava incapaz de cometer os tais desatinos, não tanto por virtude mas por pura falta de imaginação. Nos domingos, eu chegava a assistir três filmes seguidos: era quando me sentia livre, tão envolvida com as histórias alheias que me empolgavam de tal jeito que era uma violência voltar para uma outra realidade que só me fazia sofrer.

Chegava a me assustar quando Joaquina vinha bater na minha porta. Ou me puxava pelo braço, gaguejando, “O al-al-almoço…”

E se eu fizesse esportes? Presenteou-me com o título de sócia de um clube elegante, presenteou-me com uma raquete, e se eu jogasse tênis? Deixei a raquete fechada no armário. Quando ia ao clube era para ficar lendo debaixo de uma arvore. Ou vadiando pelo gramado. Não tinha amigos. Quando me sentia por demais deprimida, entrava numa confeitaria e ficava comendo doces, sem olhar para os lados.

Há muito ela já linha desistido de fazer de mim a jovem charmosa.

Brilhante. Mas por quê?, devia se perguntar num desconsolo. Por que eu, que começara tão bem, tinha que me transformar naquela mosca morta, gostava dessa expressão, mosca morta. Perdeu a fé em mim. Não era fácil me perdoar por isso. Cansou-se de inventar estímulos para me fortalecer: eu era fraca, o que significava, não tinha caráter. Ainda assim, investiu contra mim algumas vezes, não era de se conformar rapidamente. Meu cabelo era seu alvo preferido, mas que sabonete estava usando para ele ficar assim murcho? Opaco. A testa parecia maior ainda com o penteado todo puxado para a nuca, quem sabe uma franja?

E roer as unhas, meu Deus! Além de antiestético, não era repugnante viver com as pontas dos dedos metidas na boca? Minha magreza também era exasperante. Agravada com o costume que peguei de andar meio curva, escondendo o busto. Um busto que era uma tábua… De tudo, escapava meu estrabismo, meu pai tinha esse mesmo jeito indefinido de olhar.

Uma noite — era Natal — surpreendi-a chorando quando fui chamá-la no quarto, as visitas já deviam estar chegando “Simples enxaqueca”, desculpou-se assim que me viu. E retomou sua expressão de alheamento. Soberba. Mostrara- se ácida desde cedo, quando soube de mais uma derrota do Eixo: “Culpa desses ingleses! Aconteceu o mesmo quando perdemos a…” Estalou nervosamente os dedos. Como não encontrasse a referência, passou depressa para outro assunto.

A árvore foi armada na sala e ali reuniu-se a família em meio a uma conversa entremeada de frutas secas, vinho e sarcasmos trocados entre minha avó e o grupo mais próximo de parentes que se amavam e se detestavam com igual intensidade. Tarde da noite, quando todos se foram, ela pareceu aliviada. Esvaziou com prazer seu copo de vinho e começou a recolher papéis de presentes e fitas espalhados por todos os cantos. Sentei-me no almofadão para comer sossegada minha fatia de peru. Então ela veio criticar meu vestido, por que aquele vestido antigo?

E o cabelo com a fivelona puxando tudo para a nuca, mas será que eu não via como esse penteado me deixava feia? Respondi-lhe que gostaria muito de ser bonita, ah! quem me dera. Não achou a menor graça na resposta. Foi até a árvore e apagou a velinha vermelha que pingava a cera no tapete. “Isto é polêmica, filha. Sua negligência é contra mim.” A senhora então acha que sou infeliz só para desgostá-la?, perguntei apertando o estômago, os medrosos sofrem do estômago. Mas ela não ouviu, falava agora com Joaquina e a outra agregada que viera ajudar na ceia.

No quarto, cortei uma franja rala na testa. Saiu torta. Fiquei me examinando no fundo amarelado do espelho. E se casasse? Seria uma forma de me libertar, mas no lugar da avó, ficaria o marido. Teria então que me livrar dele. A não ser que o amasse. Mas era muito raro os dois combinarem em tudo, advertira minha avó. Nesse em tudo estava o sexo.

“Raríssimas mulheres sentem prazer, filha. O homem, sim. Então a mulher precisa fingir um pouco, o que não tem essa importância que parece. Temos que cumprir nossas tarefas. O resto é supérfluo. Se houver prazer, melhor, mas e se não houver? Ora. ninguém vai morrer por isso.”

Ninguém? Pensei nas mulheres do álbum. Tirariam as jóias. Os vestidos.

Hora de tirar o espartilho, tão duras as barbatanas. Os cordões fortemente entrelaçados. Se deitariam obedientes, tremendo sob os lençóis. “Ninguém vai morrer por isso.” Mas há muito elas estavam mortas.

Na manhã seguinte, com naturalidade, enquanto lia o jornal, minha avó falou em Margarida; “Afinal, não fugiu com o antigo namorado, fugiu com o primeiro vagabundo que encontrou na esquina, um desclassificado. Preto. O delegado quis saber se devia tomar alguma providência. Que providência? Agora é melhor deixar. Preto, imagine.

Criar uma menina como filha e saber que foi deflorada por um preto.

Enfim, há coisas piores ainda”, acrescentou e voltou a mergulhar no noticiário político do jornal.

A virgindade. As jovens se dividiam em dois grupos, o das virgens e o grupo daquelas que não eram mais virgens, onde estava Margarida — uma agressão direta contra a família. As virgens percorreriam seu caminho com óleo suficiente nas lamparinas, mas as outras, as virgens loucas, estas se perderiam na escuridão fechada por espinhos.

Desmoralizadas, acabariam na solidão, isso se não sobrevivesse algo de pior e que minha avó evitava mencionar. Levantava a mão e punha-se a sacudi-la profeticamente, “Não gosto nem de pensar!…”

Ia começar a batalha do casamento. Batalha? Nome demais pomposo, não haveria nenhuma batalha, eu devia apenas me casar cedo, destino natural das jovens assim obscuras. E Sem ambição. “Não quero fechar os olhos antes de deixá-la em segurança”, costumava dizer. E segurança era ter um marido. O risinho vinha em seguida, quando perversamente se referia as minhas tias solteiras, essas encalhadas. Então eu pensava naqueles navios abandonados no porto, a ferrugem. O mofo.

Guardei na gaveta o corte de lã que me deu para um tailleur e fiquei folheando o figurino francês que veio no pacote, modelos lindos, mulheres lindas. Casar. O importante era não deixar passar a idade de ouro. O brilho da juventude — o modesto brilho que havia em mim — era breve. “Veja. querida, essa sua tia Rosana. Borboleteou tanto e agora inventou de ser poetisa só para chamar atenção, coitada. Poemas eróticos, imagine. Olhem para mim! ela quer dizer.

Encalhou e fica fazendo onda, estou em pleno mar!”

O figurino francês era um aviso: precisa se enfeitar. Ana Luísa. Eu residia.

Por que resistia? Só para irritá-la, era isso? Pensei em minha mãe com seu violino inútil. Com sua morte inútil. Dela, ficou o nome que eu renegava. O medo. A guerra já estava no fim, os judeus iam ser deixados em paz de agora em diante. Mas até quando? Se no menos a minha mãe tivesse vivido para me cobrir de beijos e me dizer que eu devia levantar a cabeça e rir dos tolos, dos enfatuados com seus preconceitos, com suas mesquinharias. Vai. Ana Luísa! Não sabe então o quanto é bonita e inteligente e graciosa?… As lágrimas escorreram intactas pelas páginas acetinadas do figurino, marcando de leve as lingeries de cetim com rendas. Fora cômodo para ela morrer assim jovem, enlaçada ao seu amado. Mas e eu?

Este não serve porque já está um pouco calvo e a roupa é horrível, pensei me desviando do homem ajoelhado à minha esquerda. O homem da minha direita usava um perfume discreto, da melhor qualidade. E aquele perfil de Humphrey Bogart, faltava apenas o cigarro. Ao seu lado não havia nenhuma patroa, tinha ido à missa desacompanhado. Queria ver agora suas mãos mas estava de braços cruzados, e as mãos?! Com o rabo do olho notei que estendeu a mão esquerda para pegar o missal no banco. Meu suspiro virou quase um gemido: no anular eslava a aliança de ouro que achei grossa demais, um exagero de aliança. Fiquei sorrindo e olhando para a pintura do teto da igreja onde anjos diáfanos esvoaçavam entre guirlandas de flores se despetalando ao vento. Senti que minhas idéias também se despetalavam e eu mesma ia assim sem sentido como as flores da pintura. Culpada, era melhor não ter ilusões, me sentiria sempre culpada. Mas sem ressentimento, desejei fechando com força os punhos.

Relaxei. Agora me distraía em imaginar as difíceis posições que o pintor tomara para pintar aquele teto. Um anjo maior, de cabelos assim castanhos como os meus, parecia me encarar, ligeiramente estrábico. Troquei com ele um olhar de cumplicidade. Tu também?… O homem calvo já pedia licença para passar, a missa terminara. Era a primeira missa do ano e minha avó não tinha aparecido. Pregava a necessidade de se praticar todos os sagrados mandamentos mas não seguia nenhum. Chegava a sugerir que entre Deus e ela existia um secreto entendimento. Estava dispensada desses rituais. Joaquina também estava dispensada mas por outros motivos, “Primeiro a obrigação e depois a devoção”, minha avó costumava dizer. Ficar em casa trabalhando ainda era a melhor forma de agradar a Deus.

Chovia. Fiquei no alto da escadaria da igreja, olhando a rua. Foi então que Rodrigo veio me oferecer o guarda-chuva. Você estava na missa?, perguntei e ele riu e não respondeu. Em romances e no cinema eu já tinha visto demais a fórmula fácil de dizer. Que extraordinário!

Tenho a impressão de que já nos conhecemos há canto tempo.

Não tive a impressão, tive a certeza: ele apareceu de repente e me ofereceu o guarda-chuva, Deixei-me levar com a mesma naturalidade com que foi me conduzindo. Falava alto. Ria alto. Mas não era vulgar.

Tinha nos gestos a agilidade premeditada de um bailarino. Sua mão segurava meu braço com algum desprendimento, permitindo que me desvencilhasse se quisesse. Não quis. Fiquei completamente perturbada quando o encarei mais de perto e tive uma outra certeza, a de que seríamos amantes.

Ainda uma vez, perguntei-lhe, mas se não estava na missa, onde estava? Ele riu o riso contagiante. “Você faz perguntas feito um detetive.”

Vestia um elegante impermeável preto mas o guarda-chuva era velhíssimo, da pior qualidade. Entramos num café. “Vou fazer seu retrato assim mesmo como está, de pulôver vermelho e meio vesguinha, você é meio vesguinha”, disse e pediu um conhaque. Pedi um chá. E apontei para o mostruário de cigarros e chocolates, baixei o tom de voz.

Quero também um daqueles tabletes, o maior. Desembrulhei o tablete de chocolate no colo e disfarçadamente fui levando os pedaços à boca enquanto ele dizia que era pintor mas sua paixão verdadeira era o jazz, “Um dia ainda vou dirigir uma orquestra de jazz.”

Na semana seguinte já estávamos nus debaixo de sua manta de lã. ouvindo seus discos. “Se houver prazer, melhor ainda”, disse minha avó.

“Mas esse prazer é raro.” Principalmente rápido, descobri e me abria inteira para fezê-lo feliz porque ele ficava feliz. Queria vê-lo esgotado, queria que seu corpo harmonioso e rijo desabasse amolecido ao lado do meu tão tenso. Com medo de vê-lo me afastar de repente, desativado.

Desinteressado. Quando esse medo foi diminuindo, começou a crescer o prazer. Ele notou a mudança, creio mesmo que esperou por essa mudança, meu gozo não era mais submissão. Agora me entregava com tanto amor que precisava me conter para não cair em pranto, Eu te amo, eu te amo! “Se gosta de chorar, pode chorar, Aninha. Não fica com vergonha não”, seu hálito soprava ao meu ouvido. E montava em mim com o mesmo fervor escaldante com que montava na sua motocicleta, tinha uma moto italiana. “Quero que faça comigo tudo o que tiver vontade de fazer, chorar, rir, andar no arame, já experimentou andar num arame? Andei num, sabe que é simples'”

Já tinha lhe falado sobre minha avó. Ele quis saber mais. Ouviu-me com a maior seriedade. Às vezes, ria. E eu ficava olhando sua bela cabeça iluminada. “Você está perdendo aquele jeito de quem está debaixo de um monte de pedras. É natural, com essa avó nazista…

Também não fica mais olhando para os lados, como se fugisse da polícia, ah, Aninha, não é mesmo bom ser feliz?”

Tinha quatro anos mais do que eu, cursava vagamente um vago curso de admissão, pintava, ouvia jazz e ganhara uma bolsa de estudos para a Irlanda. Por que Irlanda? lembrei-me de perguntar. Ele ficou pensando. Os cabelos louros eram crescidos, o que fazia as pessoas estranharem, mas como um jovem tinha cabelos compridos assim? A guerra não ensinara o corte rente, severo? A moto também despertava curiosidade, diferente das outras que já começavam a aparecer. Tinha mãos finas, bem cuidadas.

“Sou um trota-mundo — disse. — Calhou de ser a Irlanda. então, Irlanda! Vai comigo, Aninha? Mas quero fazer antes seu retraio.” Falava muito nesse retrato. E nas viagens fabulosas que faríamos montados na moto. Ou num j ipe, Eu sabia no fundo do coração que não ia haver nem retrato nem viagem. Mas era uma alegria participar dos seus planos, discutir esses planos. Não sendo para a Alemanha, eu disse. Sou judia.

Pelo menos, metade judia, contei-lhe durante um almoço. Agarrou minha mão: “Se me prometer que vai me dar seu quinhão de carne de porco, não direi nada ao garçom, vamos, faço qualquer negócio por um naco de carne de porco!”

Rimos ao mesmo tempo enquanto eu enchia meu copo de vinho, já estava aprendendo com ele a gostar de vinho.

“Escuta, Aninha, não sinta tanta pena de si mesma! Vai me jurar que nunca mais vai se achar uma coitadinha? Não sei o que será de nós nem nada, mas haja o que houver, vai me fazer isso?”

Os defeitos da minha avó e que eu conhecia bem podiam se resumir em apenas dois, soberba e avareza. Sabia ainda que eu tinha esses mesmos defeitos, a diferença é que minha soberba vinha mascarada. Sem a sua coragem. Mas foi no amor que descobri o quanto era mesquinha, egoísta, de um egoísmo feito mais de tristeza do que de outra coisa. Já me confessara a tantos padres mas a verdadeira confissão fiz a ele. Sou ruim, covarde, não te mereço! Ele me acariciava: “No dia em que ficar de bem com você mesma, então vai ser formidável! Eu também andei muito tempo assim, meu inimigo mas passou.

Somos muito jovens, Aninha, fortes como os bois que nem sabem a força que têm… Acabou a guerra mas logo vai começar outra. E quando não tem guerra, tem guerrilha, e daí? Tudo é bom, faz parte, é vida. O negócio é não se amarrar em nada, ficar com os braços livres para dançar, brigar, amar — ah! Ana Luísa Ferensen Rodrigues. Sabe que tem um lindo nome? Mas tira essa franja, chega de se esconder!”

Assim como escondi minha testa usei de todos os estratagemas para esconder o meu pobre amor. Para esconder principalmente a esperança. Pergunto hoje se desde o primeiro dia em que encontrei Rodrigo debaixo daquela chuva ela já não teria pressentido sua presença. Deixou-me prosseguir por curiosidade, malícia. Como fazia nas nossas partidas de xadrez, quando me animava a lutar, “Avança logo esse cavalo, o que está esperando?” Montei no meu cavalo e galopei pelo tabuleiro numa ingênua exibição de independência. Quando ela achou que eu exorbitava, entrou rápida na partida.

“Domingo a Joaquina vai fazer uma torta de galinha, por que não convida esse moço?”, perguntou quando cheguei mais cedo da Faculdade, fazia agora um curso de Letras. O antigo suor umedeceu minhas mãos. Guardei no vestíbulo o cachecol e a boina. Mesmo sem vê-la, sentia seu olhar bondoso. Mas sua bondade me assustava ainda mais. Ouvi minha voz sair desafinada, Não sei se ele vai poder. Atalhou-me rápida, “Claro que pode, filha. Não gosto de vê-la namorando pelas ruas feito essas empregadinhas. Você tem família, uma casa. Aqui ele será bem-vindo”.

Corri para Rodrigo, abracei-o com força, beijei-o com desespero, Rodrigo, Rodrigo!… Ela já sabe, não quero que mude nada, não quero!

O domingo luminoso. Ele montou na moto. Montei atrás, agarrada na sua cintura, não deixe, meu Deus, não deixe ele ir embora! Fez um cumprimento respeitoso na direção do casal de velhos que nos olhou com reprovação.

Acelerou o motor. “Vovó nazista vai ter um impacto com a minha elegância, veja, minha gravata é assinada, Jacques Fath!”

A gravata não fazia sentido com a roupa desbotada nem com os sapatos de andejo, com prováveis furos nas solas. Lembrei-me do primeiro dia em que nos vimos, a capa preta. O guarda-chuva. Fiquei rindo e chorando e beijando seu paletó amarrotado, cheirando a mofo.

“Mas Aninha, o que ela poderá nos fazer?”

Fez. Mesmo de longe devia ter intuído que Rodrigo era instável.

Descuidado — essa a palavra. Descuidado. Um amor frágil assim não podia resistir. Nossas primeiras brigas. Quis avisá-lo do perigo das ciladas, Rodrigo, ela não pode gostar de você, sabe que somos amantes, toda essa amabilidade é falsa, não acredite, tem alguma coisa atrás! Ele chegou a se irritar, mas eu estava ficando maníaca? Que tolice! Sabia perfeitamente que ela era uma burguesa inveterada, nasceu assim, ia morrer assim, um tipo. Sabia ainda que era o oposto do homem que ela queria para genro. Corrigiu, para neto. Mas enquanto fosse simpática, que mal havia nisso?

Quase diariamente convidava-o para jantar. Bons vinhos.

Pequenos presentes, ficou generosíssima. O sorriso aberto, os olhos apertados enquanto as agulhas metálicas caminhavam debaixo da lã.

“Nosso baterista vai pintar o meu retrato”, anunciou-me. Reagi. Mas ele não tem dinheiro nem para as tintas, avó. Nem meu retrato conseguiu acabar, é talentoso mas não se organiza, é boêmio… Ela ficou me olhando com inocência. “Mas vou pagar adiantado, querida, fique tranqüila, já combinamos tudo.” Procurei-o na maior aflição, Você não vai aceitar o dinheiro dela, não vai fazer isso, tem alguma coisa por detrás! Ele ensaiava na nova bateria que trocou pela moto. Me fez um sinal gracioso, que me sentasse e ficasse quietinha. Por favor, quietinha, sim?

“Estou criando. Vovó nazista vai ficar para depois.”

Discutíamos com freqüência a pretexto de tudo. Eu perdia o humor e ele reagia gracejando mas meio infeliz, não tinha agora aquele desprendimento do início misturado à alegria de viver — mas de onde vinha pingando aquele fel? “Você é parecida com ela, uma burguesinha empoeirada”, me disse rindo. Eu ria junto mas não ficava uma interrogação dolorida mesmo nos nossos diálogos em torno dos cálculos de futuro? Cálculos. A reconciliação fazia-se no amor total.

Pleno. Sem o amigo fervor.

E o retrato, avó? Quando a senhora vai posar?, perguntei e ela abriu no colo o cachecol e o gorro verde que estava tricotando para Rodrigo. Fez um comentário sobre esse tom de verde que naquele cabelo amarelo-ouro ia ficar bonito, com um jeito assim de bandeira. Encarou-me. “Ah, sim, pedi a ele que deixasse para a volta, ando com um pouco de enxaqueca. O retrato pode esperar.” Não entendi, mas do que ela estava falando, que volta? Ela recomeçou com as agulhas. “Mas então não sabe, filha? Ele não lhe falou sobre isso? Até o fim do mês ele embarca. Aquela viagem que estava programada, não era para a Irlanda?”

Tive que me conter para não jogar longe a xícara de chá que tinha nas mãos. Fui para meu quarto. Fiquei roendo um tablete de chocolate, viagem? Assim de repente? Era tarde da noite mas saí escondida e fui ate seu apartamento.

Interpelei-o. Por que não me contou nada.

Rodrigo? Quer dizer que agora você fala com ela sobre os seus projetos? E o dinheiro? Ele me beijou na boca, nos cabelos. Serviu-se de uísque.

Serviu-me também. “Eu já ia contar, amor, a vovó me ofereceu um empréstimo. Pensa que com isso se livra de mim. Para as tintas, fez questão de frisar. Ela é muito elegante.”

Elegantíssima, eu disse. Deixei-o recostado nas almofadas, belo como um anjo ouvindo o seu jazz.

A sala com um vago cheiro de altar. A tapeçaria com o leopardo espiando por entre as árvores. O piano. O álbum de retratos — tudo continuava exatamente igual ao tempo em que ali vinha me sentar para ouvir as histórias dos eleitos que viveram e morreram em estado de perfeição. Faltava a sacola das lãs. Ela já tinha se recolhido.

O inverno deste ano estava mais úmido. Deixei os livros e a capa no vestíbulo. Joaquina veio me oferecer doce de leite. Pedi-lhe um chocolate quente e fui para o quarto da avó. Encontrei-a na cama, mas ainda vestida. E de repente achei que tinha envelhecido. Perguntou sobre o filme, era de guerra? Fez um muxoxo.

Cacetes esses enredos mostrando o quanto os americanos e ingleses eram espertos ao passo que os outros… Desligou o rádio que tocava baixinho o Adágio de Albinoni, fez um comentário, podia existir no mundo uma música mais triste? E quis saber se eu recebera alguma carta. Fiz que não com a cabeça.

“O nosso amigo não era lá muito certo”, ela disse. “Mas tão simpático! Foi bom você não ter alimentado ilusões.”

Alimentei ilusões, avó. Mas não estava ainda pronta para o amor, não sei como é com os outros mas no meu caso tinha que me preparar, lá sei! amadurecer. Agora já sei, pelo menos acho que sei. O que perdi em ilusão, ganhei em segurança.

“Durou tão pouco, filha.”

Sem saber por que, abri assim meio ao acaso a gaveta dos seus novelos de lã e vi o novelo verde. Onde ele estaria agora com seu gorro?

Sua música? Ora, a duração, mas que importava a duração. Foi amor.

Passou velozmente como no meu sonho da véspera, quando ele me apareceu com seu guarda-chuva aberto, aquele mesmo, nem cheguei a ver suas feições, só pude adivinhar-lhe o vulto. Acenou-me. E sumiu deixando para trás o guarda- chuva e o barulho da motocicleta que logo se confundiu — poeira e som — com o motor de um caminhão de estrada. Mas foi amor. Apurou-se minha autocrítica, nunca pude me ver com tamanha lucidez como me vi. Com uma dureza que muitas vezes fez Rodrigo me repreender, “Não exagere. Aninha, a gente é sempre melhor do que pensa”. Mas até nos momentos mais agudos dessa autoflagelação eu tive o que não tivera antes, esperança. Esperança em mim. Esperança nos outros, esperança em Deus, que eu nem sabia se existia ou não, mas que jamais me abandonaria.

O amor me levantou no ar e me sacudiu e me revolveu inteira.

Fiquei fulgurante em meio dessa mudança que me revolucionou. A revolução através do amor.

Fechei a gaveta. Ela me estendeu a mão. Tinha na pele as mesmas manchas dos retratos. Beijei-a. Nenhum rancor? Nenhum rancor, avó.

Ela considerava a partida ganha e agora queria manifestar sua carinhosa piedade. Seu olhar me dizia, vem querida. Eu estou aqui. Um tanto cansada, é claro, que foi uma partida dura essa, envelheci demais. Mas vamos, hora da trégua, não foi mesmo difícil?

Dificílimo, eu disse.

“O que é dificílimo. Ana Luísa?”, ela estranhou. Estranhou ainda aquela minha cara calma. Apertei-lhe a mão. No dia seguinte, quando eu chegasse e dissesse vou-me embora — só no dia seguinte poderia compreender o meu sorriso. Agora não. Joaquina já tinha lhe servido o chá, ia dormir o sono da vitória. Merecia esse sono. Tamanho ódio sufocado, as lágrimas que engoliu em meio a toda a humilhação de nos saber amantes. E sem poder explodir, ao contrário, gracejava e contava coisas divertida e inventava pequeninas delicadezas e servia o vinho e bebia junto. “Já estou até me viciando!”, exclamou certa manhã e riu tão gostosamente. A carteira aberta. Apalpando o terreno como uma cega, ela que tinha olhos poderosos. A trégua merecida. Despedi-me. Boa noite, avó.

Ela aprumou-se no meio das almofadas. Estava vestida mas sem os sapatos, a manta de crochê cobrindo-lhe os pés. “Espera, querida”, ela começou, tateante. “Toda a história desse moço… Na realidade eu nunca quis interferir, você viu. E se ofereci o cheque, foi porque…”

Está bem, avó, já sei. Agradeço a Deus por ter tido esse amor.

respondi e encarei-a. Sem rancor, mesmo naquele instante em que ela me lembrava que Rodrigo me trocou por uma viagem.

“Ana Luísa, tudo o que fiz ou deixei de fazer foi para que você não sofresse.” Mas eu não estou sofrendo, respondi.

Ela voltou-se, escandalizada: “Não?…” Tinha sido uma desmiolada, uma desfrutável pior ainda do que Margarida que não passava de uma agregada — tinha pintado e bordado e continuava assim fagueira, sem remorso? Sem sofrimento?

Deixei na mesa a xícara de chocolate que já estava morno. Era triste de se ver o arremedo de sorriso franzir a face de pedra erosada. “Em todo o caso,
também ele vai se conformar, vocês são tão jovens, é fácil esquecer.” É fácil, repeti.

“Logo você vai conhecer alguém que a ame de verdade, um moço com estrutura, filha, Não precisa ser rico, é claro, você é rica. Tudo o que eu tenho é seu. Uma menina assim culta, educada…”

Quis continuar, assim bonita, Conteve-se, era preciso não exagerar.

“Avance esse cavalo!”, ela ordenava naquele jogo em que eu preferia perder as peças para apressar a derrota. “Vamos, reaja!” Aproximei-me e acariciei sua mão. Eu sabia que no fundo ela me amava, mas por que esse fundo era tão fundo assim? Era aí que me queria dependente.

Insegura. Agora o meu cavalo avançava com naturalidade, sem pensar em conquistas — ora, que conquista? Simplesmente ele cuspira o freio cheio de sangue e seguia trotando, ah, que belo era ver livre o meu cavalo negro.

“Ana Luísa. você agora fez uma cara engraçada…” Me lembrei de uma coisa engraçada. Tolice.

“Você mudou tanto, filha. Parece até uma outra pessoa, sabia?”

Estava apreensiva. E espantada, mas o que significava isso? Uma judiazinha que o amante plantou e ainda assim com aquela cara?!…

Não fiquei amarga, avó. Não é bom isso?

“Quero que saiba ainda uma vez, filha, quero que guarde bem o que já lhe disse uma vez e vou repetir, jamais você ouvirá da minha boca a menor censura. O que está feito está feito. A única coisa que quero é ajudar!”

Mas quem estava precisando de ajuda era ela. Estranhei ouvir sua voz que de repente parecia vir de longe, lá da sala. De dentro do álbum de retratos. E o álbum estava na prateleira. Apertei as palmas das mãos contra os olhos.

Eu sei, avó. Eu sei.

Endireitou o corpo, enérgica. Estaria sendo irônica, eu?!… Puxou a manta até os joelhos. Cruzou os braços.

“Haja o que houver, sempre você terá o meu apoio. Mesmo nos dias tumultuados desse seu caso, mesmo sabendo de tudo, me calei.

Podia interferir, não podia? Meu coração ficava aos pulos quando te imaginava montada naquela máquina dirigida por um louco, sabemos que ele era louco. A minha neta querida, imagine, vivendo com um irresponsável, solta por aí afora, descabelada. sem o menor pudor…”

É que também sou Ferensen, atalhei-a. O lado ruim.

Exaltou-se. As mãos se desentrelaçaram. Apanhou uma almofada. comprimiu-a entre os dedos e amassou-a como se avaliasse o que tinha dentro. Deixou-a de lado. Zombava dela a pequena Ana Luísa? Quer dizer que até o meu antigo complexo?!… Esse da raça. Baixou a cabeça, Confundida.

Voltou a me encarar. Bizarro… Entrelaçou as mãos entre os seios e ficou balançando o corpo de um lado para o outro.

A senhora está se sentindo mal, avó? Aconteceu alguma coisa? “Aquela dor, filha”, disse debilmente, alisando o peito.

Desabotoei-lhe a gola do vestido. Já que eu mudara, também ela mudaria de tática: estava na hora de me dobrar com a chantagem da morte. Senti de perto seu perfume de violetas.

Quer que tire seu espartilho?, perguntei quando meus dedos tocaram na rigidez das barbatanas.

“Não, filha. Eu me sentiria pior sem ele. Já estou bem, vá querida. Vá dormir.”

Antes de sair, abri a janela. A Via-Láctea palpitava de estrelas. Respirei o hálito da noite: logo iríamos amanhecer.

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One thought on “O espartilho – Conto de Lygia Fagundes Telles

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