Tomou coragem e começou:
– Tenho uma coisa para te contar.
– Conta. E ela:
– É o seguinte: eu tive na minha vida uma grande desilusão.
Admirado, repetiu a palavra: “Desilusão como?” Guida mexia, com o canudo do refresco, no fundo do copo vazio. Sem olhá-lo, confirmou:
– Pois é. — E, na sua tristeza evocativa, foi contando: — Aos 15 anos, gostei de um rapaz. Namoramos, tal e coisa, mas ele foi ingrato comigo, ingratíssimo.
Pálido, com o coração batendo mais rápido, ele esperou o resto. Guida, porém, parecia não ter pressa. Então, irritado, forçou a confissão:
– Desembucha, anda! Encarou-o, baixando a voz:
– Não adivinhaste ainda?
Aterrado, balbuciou: “Quer dizer então, que…” Controlando a voz, explodiu: “Logo vi! Mulher quando dá muita sopa é aquela água! Bem que eu estava achando tudo muito fácil!” Debalde a moça, espantada com a reação, explicava: “Naquele tempo, eu era muito bobinha, não sabia de nada…” Mas ele, na fúria retrospectiva, virava-se para os fundos do bar: “Garçom!” Pagou a despesa, de cara amarrada. Ergueu-se, formal:
– Passar bem. E a abandonou, sumariamente, sem esperar o troco.
Amor
Ao sair dali, encontrou um conhecido. Arrastou-o, numa brusca necessidade de confidência. Disse horrores da mulher em geral e da Guida, em particular. Exagerou: “Com aquela cara de santinha, imagina!” Riu, sardônico: “E eu bancando o palhaço!” Então, o amigo, que era mais experiente e estava com a cabeça fria, chamou-o à ordem:
– Deixa de ser burro. Bancando o palhaço por quê? Ela te conhecia naquele tempo?
– Não.
E o outro:
– Se não conhecia, pronto, acabou-se. Ora que graça!
Mas ele, teimoso, deblaterava, ainda: “Eu dou muita importância ao passado de uma mulher.” E sublinhava: “O passado é tudo.” O outro riu: “Então, você está num mato sem cachorro. Porque hoje, todas têm passado, todas!” Com as duas mãos enfiadas nos bolsos, feroz, assumiu, ali mesmo, um compromisso irrevogável: “Presta bem atenção: se algum dia tu me vires, outra vez, com esta gaja, podes me cuspir na cara. Percebeste?” Despediram-se, e no dia seguinte, ao cair da noite, o Paiva estava, de novo, com a pequena, mais apaixonado do que nunca. Passara a noite, em claro, quebrando a cabeça. Pela manhã, ao ir para o emprego, pensava: “Mulher que foi de outro, não me interessa.” Mas acabou não resistindo, telefonando: “Fui estúpido contigo. Mas ando nervoso, esgotado. Desculpe, sim?” E, debaixo da árvore, numa mistura de humildade e imposição, a crivava de perguntas: “Mas como foi o negócio? Conta, me conta!” Guida, meio vaga, gaguejava: “Sabes como é…” Paiva, num requinte de minúcia, indagava se tinha sido de tarde ou de noite. Resposta: “De manhã.” Espantou-se: “Ora, bolas! Isso não é hora de se pecar.” Restava, ainda, uma pergunta:
– Onde?
A pequena, que morava com umas tias, confessou:
– Lá em casa. Quase chorou:
– Na tua casa? Na casa de tuas tias? Você não tinha outro lugar? Fala!…
Parecia-lhe que o fato de ter sido em casa e não alhures tornava a falta mais lamentável e indigna. Teve uma vontade, quase irresistível, de lhe dizer desaforos, insultos pesadíssimos. Mas se conteve. Olhou para os lados e, já enfraquecido, deu- lhe um beijo sofrido. Queria outro, mas Guida objetou: “Tem gente olhando, meu filho.” Depois, no passo lento dos namorados, vieram caminhando pela calçada, de braço. Súbito, à queima-roupa, ele propôs:
– Queres casar comigo? Maravilhada, suspirou:
– Se quero!
O casamento
Durante uma semana, discutiram, em termos práticos, os problemas matrimoniais. Paiva indagava: “Como é? Tu preferes casa ou apartamento?” E ela, cada vez mais doce, respondia:
– Tanto faz.
E, com isso, queria dizer que, ao seu lado, viveria em qualquer lugar. Foi exagerada: “Morava até debaixo de uma ponte.” Uma vez por outra, o rapaz tinha uns acessos de ciúmes: “Vem cá. Quem é que beijava melhor. Eu ou o outro?” Guida era mais do que enfática: “Nem tem comparação.” Ele, com os olhos marejados, dizia: “Quando me lembro que o outro cara já te beijou, eu tenho vontade, nem sei.” Guida o repreendia: “Parece criança.” Ele já estava em plena fase das medidas práticas para o casamento. Economizava dinheiro, fumava menos e fazia serões no emprego. De repente, a pequena começou a notar que o noivo empalidecia, que tinha olheiras e que se cansava ao subir escada. E, então, velando por ele, passou a fazer pressão: “Tira umas férias! Tira umas férias!” E era sinistra: “Olha que tu podes apanhar uma fraqueza!” Tanto empenho em fazê-lo ir para fora, irritou o Paiva: “Quem vê, diz que você está me chutando!” Acabou indo passar uns vinte dias numa estação qualquer. A correspondência, entre os dois, era diária e delirante. Ambos se confessavam mortos de saudades. No décimo segundo dia, Paiva não resistiu mais. Arrumou as malas e veio para o Rio. Aqui chegando, correu para a casa das tias. A criada deu a notícia:
– Está pra fora. Esbugalhou os olhos, sem entender. Insistiu: “Ué! Ela não me
disse nada?”
Como a pequena tivesse família no interior, a hipótese que lhe ocorreu foi de uma doença de parente, talvez do pai, que sofria do coração. A criada, porém, não dizia coisa com coisa. Aflito, o Paiva lhe pôs, na mão, duas cédulas de vinte cruzeiros. Então a outra cochichou:
– Foi se casar. Casou-se, ontem.
Traição
Com mais dois ou três dias, viria a saber de tudo. Ela já estava casadinha, no civil e religioso, com um antigo namorado, que a esperava na cidadezinha natal. Paiva interpelava todo mundo, sem acreditar no que lhe diziam. No seu ar de alucinado, repetia: “Como pode? Como pode?” O espanto precedeu a indignação. Finalmente, tomou-se de fúria. Andava com um vasto revólver e avisou: “Mato aquela desgraçada, por Deus que mato!” Tentavam dissuadi-lo: “Não faça isso. É mancada!” E ele, para mostrar que não mentia, puxava o revólver, exibia o revólver: “Eu sou é homem!” Era amargo: “Esse negócio de namoro é pros trouxas! O golpe é pagar.” Com a alma em carne viva, fazia-se de cínico:
– Eu, quando quiser mulher, já sabe: pago ali na bucha! À vista!
Até que, um dia, um amigo avisa: “Sabe quem chegou?” E dá a notícia: “Imagina! Guida, com o marido!” Sentiu a vista turva, uma espécie de clamor nos ouvidos. De noite, no quarto, apanhou a arma e andou examinando se todos os buraquinhos tinham as balas. Imaginou a pequena morta, as duas mãos entrelaçadas, os pés unidos, à sombra de quatro círios. Mas, na manhã seguinte, mal chega ao emprego, bate o telefone. Quase desmaiou quando reconheceu a voz de Guida. Todo o seu ódio sumia numa onda de ternura irresistível. Ela perguntava, com alegre naturalidade:
– Queria bater um papinho contigo. Pode ser?
Combinaram o encontro. Ele fez questão, porém, que fosse longe do centro da cidade. Seu pânico era que um conhecido, um amigo, os encontrasse juntos. Quando a viu, linda e mais cheia de corpo, com um costume cinza-claro, teve impulsos simultâneos e contraditórios. Se fosse coisa que pudesse, cairia de joelhos, ali mesmo, abraçado às suas pernas. Sentaram-se num canto e ele, sem exaltação, sem ódio, começou: “O papel que você fez comigo não se faz!” Disse e repetiu: “Tu és tudo para mim!” E, por fim, sentindo que não poderia viver sem ela, pediu, com lágrimas nos olhos: “Deixa este homem! Deixa este homem!” Ela parecia espantada: “Mas é meu marido, que diabo!” Foi este o seu argumento: “Um marido não é a mesma coisa que namorado!” Sensata, prática, explicou:
– Mas ele não atrapalha, não, seu bobo! Não vai fazer diferença nenhuma! Vou te provar, queres ver? — Com seu olhar de uma doçura intolerável, disse: — Marca um lugar e eu estou lá rente que nem pão quente.
Paiva balbuciou, no seu espanto: “Topas ser de dois?” Irritou-se: “Estás fazendo um bicho de sete cabeças. Ou pensas que eu sou a primeira?” Por último, vencido, escreveu o endereço de um apartamento que mantinha, de sociedade com um amigo. Disse, sem desfitá-la:
– Às quatro horas. Não precisa bater, não. Vou deixar a porta encostada. É só empurrar.
E, então, sentindo a pusilanimidade daquele homem, seu escravo para sempre — ela foi doce e voluptuosa: “Te dou um doce se tu me resistires, alguma vez!” Respondeu, errado, com um comentário:
– Mulher de dois… Minha e de outro…
No dia seguinte, à hora marcada, num lindo casaco, vestido colante, pintadíssima — ela empurra a porta e entra. Não vê ninguém. Surpresa, passa da sala para o quarto. Ainda ninguém. Veio espiar no banheiro e estaca. Vê uma sombra, que pende da bandeira da porta. No próprio cinto, e enfim libertado de sua paixão — enforcara-se o Paiva. Prendendo nos lábios um grito, ela voltou atrás. Fechou a porta e deslizou no corredor, sem ser vista — deixando um rasto de perfume bom.