Retrato do nadador quando jovem – Crônica de Fernando Sabino

By | 12/04/2022

O carro dobra a esquina e me vejo perdido na confusão de sempre: em frente ao cinema Veneza, os que vão para a esquerda estão à direita e os que vão para a direita estão à esquerda. Dou por mim entrando no posto de gasolina junto à piscina do Botafogo.

– Quantos litros?

Não, não quero gasolina: parei aqui por imposição do tráfego. Mas acho que obedeci, antes a um impulso do inconsciente: esta piscina sempre me intrigou. Uma construção esquisita, abaulada como o costado de um navio, sem revestimento, como uma obra inacabada – sempre que passo por aqui a caminho da cidade me dá vontade de ir lá dentro. Ver os nadadores, ver como vai indo a natação hoje em dia. Assistir talvez a uma competição um dia desses.

– Como é que se vai lá dentro?

Orientado pelo empregado do posto, conduzo o carro até o estacionamento debaixo da piscina. Uma piscina suspensa. No meu tempo eu só podia conceber uma piscina como um buraco cavado no chão e cheio d’água.

O encarregado da portaria me diz que posso entrar à vontade. Pergunto pelo Sílvio Fiolo: seria bom assistir ao treino de um campeão. Mas ele não está – em compensação, Roberto Pavel deve chegar de uma hora para outra.

Subo os dois lances da rampa, o que não dá para me tirar o fôlego. Eis a piscina. Bela como a projeção de um slide, debruçada sobre a enseada, ao fundo do Pão de Açúcar. Parece flutuar sobre a corrente de tráfego que me trouxe até aqui. A água de um azul luminoso se agita com o movimento de dezenas de nadadores nas raias dispostas em sentido transversal. Alguns curiosos do mundo adulto, como eu – não serão ex-nadadores, mas simplesmente pais ou acompanhantes – se espalham na arquibancada, olhando distraidamente a meninada. Porque são todos bem jovens, nadador começa cedo. E, de repente, este ar úmido, esta atmosfera peculiar a todas as piscinas, este vago cheiro de cloro que me vem como uma emanação da minha juventude.

Dia de competição: o ambiente festivo, tenso de expectativa e emoção, longe da monotonia dos treinos e da despreocupação dos dias comuns. Havia qualquer coisa de silício naquela longa e obstinada mortificação do corpo para conquistar a vitória. Ou era a simples vaidade humana de ser um animal veloz? Participar de uma disputa a que ninguém nos obrigava, despender até o fim e além do fim o que tivéssemos de energia para conquistar alguns décimos de segundo – que ganhávamos com isso? Chegada a nossa vez, caminhávamos para a borda da piscina como condenados para o sacrifício. E no dia seguinte, passada a hora da provação, tudo recomeçava – o esforço minucioso e tenaz para conseguir baixar mais alguns décimos de segundo. Tudo isso para quê?

É o que a natação, como esporte, tem de mais trágico: tudo isso para nada. Sair da terra firme, fazer da água seu elemento e substância é para o nadador um desafio à sua própria natureza. Daí a tendência dos ex- nadadores para a aviação. Ou a fatalidade dos que morrem afogados.

Pavel é um ex-nadador de 34 anos, físico de atleta, fisionomia jovem e limpa, dedicado como um missionário à sua tarefa. Com dicção clara e elaborada, vai me explicando o que é a natação hoje em dia. Suas ideias são bem formuladas, denunciando excelente preparo em cursos especializados. Nada de noções empíricas do meu tempo, em que cada nadador era para o técnico um ser humano diferente, com maior ou menor jeito para o esporte. Fala em biomecânica, em endurance, em interval training, em método Cooper – não confundir com o teste Cooper, é o método mesmo. Estou sabendo. E em controle de pulsação cardíaca. Sei, sei. As emulações motivadoras. O campo somático e o campo psíquico. Tudo isso em meio à conversa, de maneira simples, despretensiosa e convincente. Estou sabendo. Natação hoje é uma ciência.

– Sei, sei…

Na verdade não estou sabendo mais nada, a explicação me deixou boquiaberto. Quer dizer que não basta cair n’água e sair nadando, aperfeiçoar o estilo e treinar sempre para melhorar o tempo. O nadador hoje é preparado como um cosmonauta antes de ser enviado à Lua. Suas reações são conhecidas e controladas cientificamente. O ritmo cardíaco, por exemplo, obedece a uma escala ideal que vai de 140 a 190 pulsações. Vinte tiros de 50 metros, com intervalo de 5 segundos, que antigamente levariam um nadador ao cemitério, é coisa corriqueira no treinamento – porque a pulsação se mantém a 140. E assim por diante. O próprio nadador controla sua velocidade olhando um grande cronômetro eletrônico à beira da piscina. Uma complicada aparelhagem, cheia de luzes e botões, registra como um computador a chegada de cada um, com precisão de centésimos de segundo. Filmes de grandes nadadores são usados no estudo dos seus movimentos debaixo d’água. O treinamento acompanha as últimas descobertas no campo científico, e enquanto houver progresso na ciência, haverá progresso na natação. No tempo de Johnny Weissmuller os entendidos sacudiam a cabeça: não existirá ninguém mais veloz. Hoje suas marcas, como as de todo ex-nadador, nos fazem sorrir. E Pavel sacode a cabeça: existirá sempre alguém mais veloz. Se for assim, onde vamos parar?

Deixo a piscina com a sensação de estar no mundo do futuro – o que eu imaginava em meu tempo. Tempo de Maria Lenk e Piedade Coutinho, Arp e Vilar. Vilar, Isaac, Leônidas, Benevenuto e Mosquito – os cinco heróis da Marinha, que chegavam de avião, ganhavam todas as provas e iam embora! Qualquer menino destes que vi nadando ganharia de todos nós. Aqueles recordes de tartaruga tão duramente conquistados não me dão hoje ao menos o consolo de nadar 100 metros sem botar a alma pela boca. Acendo um cigarro (notei, pelo menos, que Pavel também fuma) e volto para o carro, pensando que esta foi uma maneira de lembrar a mocidade, como outra qualquer. Éramos apenas jovens nadadores, sem ciência nenhuma, e às vezes sem disciplina também: o pileque de gim com laranjada que Ivo Pitanguy e eu tomamos às vésperas de um campeonato brasileiro… Olho ao redor: um campeonato realizado exatamente aqui – na piscina do Guanabara, de água salgada, que hoje parece enterrada sob esta, como as ruínas de um tempo morto.

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