Um menino de paixões de ópera – Crônica de Nelson Rodrigues

Bem me lembro dos meus cinco, seis anos. O vizinho era, então, todo o meu horizonte humano. Ainda vejo as pessoas que moravam ao nosso lado, ou em frente, ou na esquina. Os sujeitos se cumprimentavam assim: — “Bom dia, vizinho. Co­mo vai, vizinho?”. E a simples palavra tinha uma tensão, um frêmito, uma magia. Era como se “vizinho” fosse um enfático nome wagneriano, uma espécie de Lohengrin prodigioso.

O mundo era aquela meia dúzia de vizinhos. E justamente a Lili veio morar duas ou três casas adiante da minha. Hoje nin­guém se chama Lili. Lili é um nome nostálgico, obsoleto, es­pectral. Naquele tempo, não. Em cada ma havia uma Lili, ou duas ou, até, três. Havia um pó-de-arroz que se chamava Lili. Minto. Não era Lili, era Lady. Também havia Odetes por toda a parte. Ao passo que, hoje, somos um povo de poucas Odetes.

Lili. Conheci o nome antes da pessoa. Um dia, eu estava na mesa, tomando café com macaxeira. E, então, alguém falou em Lili. Achei o nome lindo. Lili. Aquilo ficou gorjeando em mim. Faço, porém, a ressalva: — aos cinco, seis anos, não se faz nenhuma seleção auditiva. Para mim, qualquer nome era bo­nito. Morava na rua Dona Maria um “seu” Sepúlveda. Era capitão da Guarda Nacional e tinha bigodões. Sepúlveda, ou qualquer outro nome, vem com um halo de mistério, de graça e de es­panto. Que vontade tive de me chamar Sepúlveda!

E Lili foi, exatamente, a minha primeira paixão de menino. Antes de vê-la, eu a amei. Amei o puro nome, o puro som. Era a primeira Lili da minha infância. Cinco anos tinha eu. Ou seis. Vá lá, seis. Sentia que aquele nome insinuava um mistério ou, mais do que isso, um destino. Fui varado por um sentimento de pena e de medo. Como se Lili fosse alguém que já morreu e que só aparece, por um momento, na memória dos espelhos.

Até que, uma manhã, ou tarde, sei lá, eu a vi. E, de repen­te, Lili deixou de ser apenas um som. Passava a ter um olhar, um perfil, um gesto. E era gorda. Lili gorda. Hoje, ninguém vê uma gorda sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. Vive­mos uma época tão sem busto, tão sem quadris, que ninguém entenderia a Lili de 1918. Os homens eram magros, tinham a face e o peito cavos. Mas a mulher podia ser gorda, ou, melhor, devia ser gorda. A partir dos catorze anos, os quadris e os bus­tos explodiam. Simples adolescentes tinham os flancos tão pe­sados que precisavam se pôr de perfil para atravessar as portas. Lili era a gorda em flor, como a mulher do Lemos, e outras, e outras.

Agora já sei a minha verdadeira idade, na época: seis anos. Sim, tinha seis anos quando fui matriculado na escola pública, turno da manhã. A casa de Lili ficava no caminho da escola. E não era bem casa, ou por outra, eu só me lembro da janela, em que ela se debruçava, pendida de sonho. (Eu diria que, em nos­sos dias, a televisão matou a janela.) Mas, como ia dizendo: todas as manhãs passava eu com o meu livro, o meu caderno, meu lápis e a merenda (geralmente uma banana). Quando via Lili, bai­xava a cabeça, transido de vergonha, e deslizava rente à pare­de. O patético da escola era quando eu passava na ida e quando passava na volta. Se ela estava na janela, a minha felicidade era mortal. Lembro-me de que, uma manhã, a professora me cha­mou para o quadro-negro. Eu devia desenhar uma flor, ou pin­tar, não sei. Quando fui apanhar o giz, a professora me puxou: — “Menino, você não lava as orelhas, menino?”. E fez um es­cândalo para a classe: — “Nunca tomou banho?”. Exultava: — “Olha aqui o pescoço! Vem cá. Deixa eu ver as unhas. Mostra, anda!”. Naquele momento, tive a sensação da nudez pública. Nunca me senti tão nu. A professora está dizendo: — “Se apa­recer aqui outra vez de orelha suja, fica de castigo”. E eu só pen­sava em Lili. Que alguém fosse dizer a Lili: — “Menino porco”.

(Estou falando muito de mim mesmo.) Mais alguns dias e começo a ouvir gritos. Gritos de mulher varavam a rua, de ponta a ponta. Toda a vizinhança veio para a janela. E ouvi alguém dizer: — “É a Lili que está apanhando”. A menina tinha um pai de Amor de perdição, sim, um pai de Camilo Castelo Branco. Minha mãe pergunta: — “Está sentindo alguma coisa?”. Eu de­via estar branco. Pouco depois saí para a escola. E pela primeira vez parei na calçada de Lili. O pai batia de cinto. Da rua, ouvia-se o cinto cantar na carne. A menina berrava: — “Não, papai, não!”. E o velho, possesso: — “Engole o choro! Engole o choro!”.

Aquilo ficou em mim para sempre. Engole o choro. Eu, fas­cinado, não saía do lugar. E, súbito, o velho parou de bater. Lili ficou gemendo, baixo e doce: — “Papaizinho, papaizinho!”. E havia uma voluptuosidade triste no seu lamento. Só então saí correndo para o colégio.

Chego no colégio. A professora me chama: — “Deixa eu ver. Vem cá. Limpou as orelhas? E o pescoço?”. Baixei a vista: — “Tomei banho, sim”. Pegou-me pelo braço e me sacudiu: — “Diga sim, senhora. Não tem educação?”. E eu: — “Sim, se­nhora”. Mas ela ainda bufava: — “Você não se esfrega direito. Precisa aprender a tomar banho”. Passou. Fui para meu banco. Até o fim da aula teci toda uma fantasia fúnebre. Sonhava com a minha morte. Se eu morresse, Lili teria pena de mim, amor por mim.

Quando eu passei pela casa de Lili, ela estava na janela. Can­tarolava: — “Cobre, me cobre, que eu tenho frio”. Claro que me escapava toda a insinuação erótica do verso. Vim namoran­do o som. “Cobre, me cobre, que eu tenho frio.” Em casa, falavam da surra de Lili. Conheci, então, toda a história. Lili amava um rapaz do bairro, Paulinho Varanda. (Encantou-me esse no­me bucólico, ventilado, paisagístico.) E o pai não queria o na­moro. Paulinho Varanda não seria pior nem melhor do que nin­guém. Mas tinha um defeito hediondo para a época: era tuberculoso.

Estou vendo o Paulinho Varanda. Tinha a cara crivada de espinhas como bexiga. Ficava horas na esquina, estivesse a pe­quena na janela ou não. Quando estava resfriado, enrolava um lenço no pescoço. Ainda o ouço tossindo. E tinha, na tosse, o olho enorme do asfixiado. Talvez Lili o amasse por isso mes­mo, pela tuberculose e pelas espinhas. Devia morrer de ternura quando o via torcer-se e retorcer-se, em acessos medonhos. Um dia, na volta da escola, o Paulinho Varanda me segura. Pergun­ta: — “Quer ganhar um tostão?”. Respondi, assustado: — “Que­ro”. E ele: — “Está vendo aquela moça? Que está na janela? Vai lá e entrega isso. Toma”. Deu-me o tostão e um bilhete. Numa felicidade total, corri. Disse: — “Aquele moço mandou”. Lili apanhou rápido o bilhete e fugiu da janela.

Até hoje não sei o que dizia o bilhete. Devia ser um apelo muito triste, ou um adeus, quem sabe? Só sei que, de noite, to­da a rua começou a ouvir os gritos de Lili. Desta vez, não era surra.

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