Veneno – Conto de Nelson Rodrigues

By | 20/04/2022

Ele, a esperava, no corredor. Baixou a voz:

– Preciso bater um papinho contigo!

– Quando?

– Logo mais.

– E onde?

– No jardim, o.k.?

Mas ouviram passos na escada. Marina pediu, num sopro de voz: “Cuidado com minha filha! Cuidado com minha filha!” Fugiu ao longo do corredor, abriu a porta do quarto, entrou, trancou-se. Veio sentar-se diante do espelho; disse para si mesma: “Estou maluca, completamente maluca!” E uma coisa, sobretudo, a aterrava: que sua filha, Teresinha, de 13 anos de idade, descobrisse e desconfiasse. O fato é que, depois de 14 anos de felicidade matrimonial, ela experimentara um primeiro flerte, olhara para um homem que não era o seu marido. Uma amiga desquitada, que estava no mesmo hotel, ponderava: “Isso não é nada do outro mundo. Aproveita.” Esta palavra clara ou mesmo cínica foi de uma grande e pungente doçura para Marina. Ainda assim, perguntou, com uma expressão de tormento nos olhos e na boca:

– E minha filha?

As duas

Estavam naquele hotel de montanha há 15 dias: ela, o marido (Godofredo) e a filha única (Teresinha). O marido descera, naquela tarde, para a cidade, para atender a um chamado urgente. Teresinha, que adorava o pai, levara-o até o ônibus. Na despedida, depois de beijar e ser beijada, a menina prometera, fixando no pai os olhos serenos:

– Eu tomo conta da mamãe.

Godofredo achou graça. Homem sem imaginação e sem ciúmes, não pedira esta vigilância. Pois bem. Partiu o ônibus e as duas ficaram sozinhas. E para Marina, a pior forma de solidão era a companhia da filha. Ao longo dos anos, não conseguira conquistar a menina. Não havia entre elas nenhuma confiança, nenhum abandono, nenhum carinho possível. Desesperada, Marina perguntava a si mesma: “Mas que foi que eu fiz a essa menina? Que foi?” De fato, não fizera nada, absolutamente nada. Mas a verdade é que existia, de uma para outra, uma sutil, uma secreta hostilidade. Um dia, no confessionário, teve de admitir: “Eu não sou a mãe que devia ser.” Fez um esforço, para acrescentar: “Não gosto de minha filha. Desejaria ser como as outras mães, mas…” Qualquer tentativa que fazia no sentido de acariciar a menina a amargurava. Essa falta de amor era tão ilógica que, na sua meditação, agarrava-se à explicação espírita: “Quem sabe se em encarnações anteriores…” Agora estavam as duas sozinhas num hotel, fechada cada qual no seu mundo de solidão.

O flerte

Desde que a família chegara ao hotel começara o primeiro flerte pós- matrimonial. Para si mesma e para a amiga desquitada, ela fazia questão de sublinhar: “o primeiro, o primeiro”. Chamava-se Gustavo e estava à porta quando a família desembarcou. Ela o achou talvez bonito demais para um homem. Mais tarde, já no quarto, abrindo as malas, guardando as roupas nas gavetas, pensava naquele rosto que mal percebera nos atropelos da chegada. O pior não foi a impressão muito intensa, mas a certeza imediata de que se apaixonaria por ele. Na mesa, parecia distraída, ausente ou nervosa. De repente, porém, tomou um susto. Percebeu que a filha não a desfitava, como se lesse, com apavorante vidência, os seus pensamentos mais secretos. Dissimulou, tanto quanto possível. Riu alto, a pretexto de nada. Mas sentiu no próprio riso um som falso. Pouco depois, a amiga desquitada vinha dizer: “Viste que pedaço de homem?” Disfarçou: “Quem?” Foi ainda essa amiga quem, dia após dia, exasperou sua imaginação. Começou por dizer: “Está te olhando. Olha também, sua boba!” Foi assim que começou aquele flerte, o primeiríssimo. O marido não via, não observava nada. Marina, porém, tinha medo da filha, muito sensível, sagaz e atenta. Se não fosse a cumplicidade e o estímulo da amiga, teria talvez desistido. Mas a outra a cercava por todos os lados:

– Flerte não tem importância. É uma coisa à toa. Marina reagia:

– Mas eu sou casada!

– Ora, Fulana! Você pensa o quê? Que mulher casada é paralelepípedo? Tinha graça.

Atônita, balbuciou a pergunta:

– E minha filha? Muxoxo da amiga:

– Manda tua filha lamber sabão!

O beijo

Era realmente flerte, apenas flerte, na sua forma mais inócua e clássica, ou seja, a distância. Limitavam-se a olhares que, entretanto, eram de uma delícia mortal. Mas jamais haviam trocado uma palavra, um aperto de mão, uma carícia. A desquitada que estava no caso esportivamente, sem nenhum interesse, já resmungava: “Vocês estão bobeando! Ah, se fosse comigo!” Marina sofria, a verdade é que sofria. Até então julgara-se feliz e, de repente, descobre que sua felicidade não existe, nunca existira. Tinha agora abstrações, melancolias; um perfume a fazia chorar ou desfalecer. Acabou admitindo para a desquitada:

– Amo este homem — e repetiu, numa espécie de angústia: — Amo. A desquitada a instigou:

– Mergulha de cara! Mergulha de cara!

E, uma noite, pouco antes do jantar, aconteceu uma fatalidade deliciosa e terrível. Cruzou no corredor com o bem-amado. Tudo aconteceu de uma maneira irresistível. Sem uma palavra. Gustavo se apoderou de sua mão e a beijou, longamente. Foi um minuto ou muito menos. Mas ela saiu dali numa embriaguez completa. E o que tornava sua delícia mais aguda era o sentimento do pecado. Correu à amiga, pois sentia a necessidade imediata de uma confidência. Contou que o Gustavo a beijara na mão… A Fulana exclamou, abismada:

– Na mão?

Confirmou, convulsa: “Pois é.” Fez a outra pôr a mão no seu peito, para sentir as palpitações furiosas. Mas a desquitada parecia insatisfeita: “Vocês são dois moscas- mortas. Ora veja!” Para Marina, porém o episódio se revestia de um significado terrível. Pela primeira vez o caso saía da espiritualidade pura e se materializava. Foi nessa noite que o marido recebeu o chamado. A desquitada esfregou as mãos:

– Está pra ti. Ou é agora ou nunca!

O fato

O marido partiu. E à noite, no corredor, Gustavo pedira um “papinho”, no jardim. Marina teve de esperar que a filha, que dormia com uma coleguinha, se recolhesse. Até o último momento, teve um pavor: “Será que ela vai cismar de dormir comigo?” Felizmente a menina, sem desconfiar, foi, com a colega, para o quarto. Então, deslizou, como uma criminosa, com o coração aos pinotes e uma sensação de crime. Parecia-lhe, então, que jamais tivera qualquer amor, qualquer carinho, qualquer afinidade com o marido. Pensava nele como o último dos estranhos. Ficou no jardim com Gustavo uma meia hora. Desde o primeiro instante, sentiu-se frágil, indefesa, derrotada. Lembrava-se de que o marido voltaria no dia seguinte e que só lhe restava uma noite livre. Esta urgência do pecado era fascinadora. Por outro lado, Gustavo foi ativo, ousado, quase brutal. E a deslumbrou com um argumento de cinismo absoluto: “Uma vez só. Uma vez não são todas.” Ela hesitava, embora sabendo que se abandonaria. Na verdade, resistia à ideia de capitular sem luta, sem conquista, sem namoro. Imóvel, ia escutando:

– Deixa a porta encostada, apenas encostada… À meia-noite, eu vou lá e… Sim?

Respondeu, num sopro:

– Sim.

Voltou, correndo. Mas o deslumbramento inicial se extinguira. O que havia, no mais íntimo de si mesma, era uma angústia intolerável, a vontade de fugir e, ao mesmo tempo, um ressentimento contra o marido que não se fizera amar. Pensava, também, na filha. “Imagina se ela sabe, imagina!” De repente, aparece a desquitada e, ao saber que está tudo combinado, pisca o olho: “Felicidades!” E sai.

À meia-noite, em ponto, Gustavo empurra a porta encostada.

Abandonou-se. Primeiro, ele a beijou na boca; depois no pescoço e desceu para o seio. Fez-lhe carícias que ela não conhecia.

O remédio

Marina acordou tarde. Toda a sua angústia desaparecera; estava, de novo, feliz e com a sensação de que só agora começava a viver. Levantou-se, pôs as chinelinhas róseas e na camisola muito leve, que era quase a nudez, correu ao espelho, como se quisesse ver a própria imagem depois do pecado. E, pelo espelho, viu quando Teresinha entrou. Trazia um copo, com um líquido qualquer. Marina virou-se, mas a simples presença da filha feriu de morte todo o seu encanto de viver. Estavam as duas, no meio do quarto, face a face. Até aquele momento, havia entre mãe e filha uma polidez que era o disfarce de um sentimento mais turvo, mais profundo e mais envenenado. E, pela primeira vez, ambas viam o rosto verdadeiro da outra. Naquele instante, ocorreu novamente a Marina a explicação espírita de que em outras encarnações… Então, com o rosto erguido, quase sem mover os lábios, Teresinha foi dizendo:

– Eu me escondi detrás do guarda-vestidos… Fiquei lá a noite toda… — e repetiu, trincando nos dentes as palavras: — Detrás do guarda-vestidos…

O dilema

Marina sentiu que a mentira seria inútil. Teve um brusco pavor daquela filha.
Foi fraca, pusilânime, indefesa. Perguntou:

– Que queres que eu faça?

A resposta veio, sumária, quase doce: “Bebe isto.” Não compreendeu, imediatamente. Apanhou o copo; ergueu-o contra a luz. Tornou a perguntar: “Mas isso é o quê?” E a outra, com os lábios meigos:

– Veneno.

Recuou, aterrada, sem coragem de atirar longe aquele copo, de parti-lo em mil estilhaços. Sentiu-se agarrada. Teresinha dizia-lhe: “Então, bebo eu. Ou tu, ou eu. Uma de nós tem de beber.” Marina olhou, com assombro, o líquido, claro, enquanto a filha repetia:

– Ou tu, ou eu.

Marina fechou os olhos, foi bebendo, até o fim. Largou, então, o copo, que se estilhaçou no chão.

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