A medalha – Conto de Lygia Fagundes Telles

Ela entrou na ponta dos pés. Tirou os sapatos para subir a escada. O terceiro degrau rangia. Pulou-o apoiando-se no corrimão.

— Adriana!

A moça ficou quieta, ouvindo. Teve um risinho frouxo quando se inclinou para calçar os sapatos, Ih! que saco.

Fez um afago no gato que lhe veio ao encontro, esfregando-se na parede.

Tomou-o no colo.

– Romi, Romi… Então, meu amor?

– Adriana!

Assustado com o grito, o gato fugiu espavorido pela escada abaixo.

Ela prosseguiu sem pressa, arrastando pesadamente os pés. O quarto estava iluminado. Empurrou a porta.

– Acordada ainda, mãe?

A mulher fez girar a cadeira de rodas e ficou defronte à porta.

Vestia uma camisola de flanela e tinha um casaco de tricô atirado nos ombros. Os olhos empapuçados reduziam-se a dois riscos pretos na face amarela.

– Precisava ser também na véspera do casamento? Precisava ser na véspera? — repetiu a mulher agarrando-se aos braços da cadeira.

– Precisava.

– Cadela. Já viu sua cara no espelho, já viu?

A moça encostou-se no batente da porta. Abriu a bolsa e tirou o cigarro.

Acendeu-o. Quebrou o palito e ficou mascando a ponta.

– Acabou, mãe? Quero dormir.

A mulher aproximou mais a cadeira. Fechou no peito cavado a gola do casaco. Falou em voz baixa, com suavidade.

– Na véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você já viu sua cara no espelho?

Já se olhou num espelho?

– E daí? O véu vai cobrir minha cara, o véu cobre tudo, ih! tem véu à beça Vou dar uma beleza de noiva, mãe, você vai ver. Preferia me meter no meu colante preto mas seu genro é romântico, aquelas ondas…

– Cínica. Igualzinha ao pai. Ele ia achar graça se te visse assim, aquele cínico.

– Não fale do meu pai — Falo! Um cínico, um vagabundo que vivia no meio de vagabundos, viciado em tudo quanto é porcaria. Você é igual.

Adriana. O mesmo jeito esparramado de andar, a mesma cara desavergonhada…

– Ele era bom, — Bom! Aquilo então era bondade? Heim? Um debochado, um irresponsável completamente viciado, igualzinho a você. Imagine, bom…

Estou farta desse tipo de bondade, quero gente com caráter, sabe o que é caráter? É o que ele nunca teve, é o que você não tem. Na véspera do casamento…

– Na véspera ou no dia seguinte, que diferença faz? A mulher sacudiu-se na cadeira.

– Às vezes nem acredito. Uma filha assim, eu não acredito.

A moça esfregou os olhos congestionados. O rímel das pestanas deixou nas pálpebras dois grossos aros de carvão.

– Sou ótima, mãe. Uma ótima menina, é o que todo mundo diz.

A mulher quis abotoar o casaco. Faltavam botões. Fechou a gola na mão.

– Por que não se casa com ele? Hein? Vamos. Adriana, por que não se casa com ele?

– Com ele quem?

– Com esse vagabundo que acabou de te deixar no portão.

– Porque ele não quer, ora.

– Ah, porque ele não quer — repetiu a mulher. Parecia triunfante.

– Gostei da sua franqueza, porque ele não quer. Ninguém quer, minha querida. Você já teve dúzias de homens e nenhum quis, só mesmo esse inocente do seu noivo…

– Mas ele não é inocente, mãezinha. Ele é preto.

A mulher respirou com dificuldade. Abriu nos joelhos as mãos cor de palha.

Inclinou-se para a frente e baixou o tom de voz.

– Por que você diz isso?

Adriana deixou cair o cigarro e vagarosamente esmagou a brasa no salto do sapato. Passou a mão indolente pelos cabelos oxigenados de louro. Apanhou uma ponta mais comprida, levou-a até a cara e ficou brincando com o cabelo no lábio arregaçado.

– Olha só o meu bigode, mãe, agora tenho um bigode!

– Responda. Adriana, por que você diz isso? Que ele é preto. A moça abriu a boca para bocejar. Desatou a rir.

– Oh! meu Deus… Porque é verdade, querida. E você sabe que é verdade mas não quer reconhecer, o horror que você tem de preto. Bom, não deve ser mesmo muito agradável, concordo, um saco ter uma filha casada com um preto. Ih! que saco. Preto disfarçado, mas preto. Já reparou nas unhas dele? No cabelo? Reparou sim, você é tão esperta, um faro! Sou branca, tudo bem, mas meu sangue é podre. Então é o sangue dele que vai vigorar, entendeu? Seus netos vão sair moreninhos, aquela cor linda de brasileiro.

– Chega, Adriana.

– Não chega não, eu queria dormir, lembra? Então é isso daí, nunca vi ninguém reconhecer preto assim fácil como você, um puta faro.

O tipo pode botar peruca, se pintar de ouro e de repente num detalhe, aquele detalhinho…

Inclinou-se para apanhar a bolsa que caiu. Catou vacilante o pente e o espelho, quis ainda alcançar o lápis que rolou no assoalho, desistiu do lápis, Ih!… Levantou-se apertando a bolsa contra o peito, a outra mão apoiada na maçaneta da porta. Respirou penosamente, a boca aberta.

Encarou a mulher. Tudo bem?

– Tudo bem. Adriana. Tenho é muita pena desse moço. Seu noivo. Casar com uma coisa dessas, imagine.

– Mas ele vai ser podre de feliz comigo, mãezinha. Podre de feliz.

Se encher muito, despacho o negro lá pros States, tem uma cidade lindinha, como é mesmo?… O nome, eu sabia o nome, ah! você já ouviu falar, você adora ler essas notícias, não adora? Espera um pouco… pronto, lembrei, Little Rock! Isso daí. Little Rock. A diversão lá é linchar a negrada.

A mulher retesou-se inteira, como se fosse saltar. Ficou de repente maior, os olhos mais brilhantes. O tronco se aprumou com arrogância, rejuvenescido. Mas, aos poucos, foi afrouxando os músculos. Voltou a diminuir de tamanho, a cabeça inclinada para o ombro. A voz começou baixa.

– Você não pode mais me ferir. Adriana. Ele também não conseguia. O seu pai. Podia fazer o que quisesse, dizer o que quisesse.

Não me atingia mais. Ficava ai na minha frente com essa sua cara, a se retorcer feito um vermezinho viciado e gordo…

– Emagreci seis quilos.

– E gordo. Nada mais me atinge, Adriana. É como se ele voltasse, nunca vi uma coisa assim, vocês dois são iguais. Ele morreu e encarnou em você, o mesmo jeito mole, balofo. Sujo. Na minha família todas as mulheres são altas e magras Você puxou a família dele, tudo com cara redonda de anão, cara redonda e pescoço curto, olha aí a sua cara. E a mãozinha de dedinho gordo, tudo anão.

Adriana continuava segurando a maçaneta, o corpo vacilante, o risinho frouxo. Apoiara-se numa perna, a outra ligeiramente flexionada.

Calçava e descalçava o sapato decotado, com uma fivela de pedrinhas verdes.

– Acabou, querida? Quero dormir.

A luz da manhã já se insinuava na vidraça. A mulher fez um gesto mortiço na direção da janela.

– Fiz o que pude.

– Então, ótimo, Tudo bem, agora queria dormir um pouquinho, posso?

– Um instante ainda — disse a mulher e a voz subiu fortalecida, veemente.

– Ah, me lembrei agora, era Naldo, não era? O nome daquele seu primo, o primeiro da lista Nem 15 anos você tinha, Adriana, nem 15 anos e já se agarrando com ele na escada, emendada naquele devasso.

– Ele não era devasso.

– Não? E aquelas doenças todas? Vivia dependurado em negras, viveu unos com aquela empregada peituda, pensa que não sei?

– Ele não era um devasso. E ele me amou.

– Amou… Fugiu como um rato quando foram pilhados, o safado.

Fugiu como fugiram os outros, nenhum quis ficar, Adriana, nenhum. Vi dezenas deles, casados, divorciados, toda uma corja te apertando nas esquinas, detrás das portas, uma corja que nem dinheiro tinha para o hotel. Um por um, fugiram todos.

– Ele me amou.

Um galo tentou prolongar mais seu canto e o som saiu difícil, rouco. A mulher fez um movimento de ombros e o casaco escorregou para o assento da cadeira. Apontou a cômoda.

– Vai, abre aquela caixa ali em cima… Abriu? Tem dentro uma medalha de ouro que foi da minha avó. Depois passou para minha mãe, esta me ouvindo, Adriana? Antes de morrer minha mãe me entregou a medalha, nós três nos casamos com ela. Tem também a corrente, procuro depois. Você se casa amanhã, hum? Leva a medalha, é sua.

– Bonita, mãe.

– Só espero que não enegreça no seu pescoço — disse e fez um vago gesto na direção da porta. — Por favor, agora suma da minha frente.

Adriana pegou a medalha que luzia no fundo da caixa de charão.

Apertou os olhos turvos para vê-la melhor. Depois, ainda olhando para a medalha, fez com a outra mão um ligeiro aceno e foi saindo a arrastar os pés. Fechou a porta, Quando já eslava no corredor penumbroso, o gato veio ao seu encontro e no mesmo ritmo ondulante entraram no quarto. O vestido estava estendido na cama e sobre o vestido, o véu alto e armado, descendo em pregas até o chão. A luz da manhã já era mais clara do que o halo amarelado da lâmpada pendendo do teto. O gato pulou na cama.

– Dormir, Romi, dormir — ela sussurrou fechando a janela. — Anoiteceu outra vez, viu? Gato à-toa. Sacana. Vai amassar tudo — resmungou, puxando o gato pela orelha. O gato miou, chegou a se levantar. Voltou a se deitar enrodilhado no meio do véu. Adriana apoiou se na cama enquanto abria a gaveta da mesa-de-cabeceira. Abriu o tubo de vidro e fez cair duas pílulas na concha da mão. Engoliu as pílulas, fez uma careta. — Não vai me buscar um copo d’água. não vai? Sacana, amassou tudo. Podia me trazer água, tanta sede, porra. — Deitou-se molemente na cama e apanhando uma ponta do véu. cobriu a cara com ele. Fechou os olhos e tateou por entre o véu, tentando achar o gato.

Desistiu. Ficou olhando a lâmpada através das lágrimas. Você fugiu. Por que você fugiu de mim na escada? Eu precisava tanto de você, precisava tanto. Está me escutando? Você não devia me largar sozinha naquela escada, foi horrível, amor, eu precisava tanto de você…

Arrepanhou furiosamente o véu e sufocou nele os soluços. Atirou longe os sapatos. Ficou rolando docemente a cabeça no travesseiro, se acariciando no tecido da fronha. Agora as lágrimas corriam mais espaçadas, mais limpas. — Eu não podia ficar sozinha naquela escada, não podia — repetiu e abriu a mão para ver de novo a medalha. Ardiam os olhos borrados. Esfregou-os e recomeçou a rir baixinho. Voltou-se para o gato. — Você vai ganhar um presente, seu sacana… Quer um presente, quer?

Levantou-se cambaleante. Apertou os olhos contra as palmas das mãos e seguiu estonteada por entre os móveis Abriu as portas do armário, abriu a gaveta. Atirou as roupas no chão. — Uma fita, tinha aqui uma fila, não tinha? Uma fitinha vermelha — choramingou e ficou de joelhos. — Espera, espera… ih! achei, a glória, beleza de fila. Romi vai vibrar, espera… deixa enfiar aqui nesta droga de argola, hein? Assim… uma droga de argola apertada, tem que entrar neste buraco, espera aí…

Quando ela tombou para o lado, bateu a cabeça na quina da gaveta. Ficou gemendo e esfregando a cabeça. Merda. Ainda de joelhos, foi avançando ao lado da cama, segurando na mão fechada a fita com a medalha, a outra mão tateando aberta por entre o véu ate alcançar o travesseiro onde o gato cochilava. Agarrou-o com energia pelo rabo. — Não foge não, seu sacana, você vai ganhar um presente! — anunciou e sacudiu a medalha dependurada na fila. Concentrou- se no esforço para respirar. Abriu a boca. Inclinou-se e repentinamente prendeu o gato entre os cotovelos. Amarrou-lhe no pescoço a fita com a medalha e abraçou-o com alegria. — O sacana me arranhou!… Ganhou um puta presente e me arranhou, me arranhou… — ficou repelindo. Com a ponta do dedo, fez a medalha oscilar. Ih! ficou divino, olha aí, um vira-lata condecorado com ouro!…

O corredor estreito continuava escuro, Adriana parou para segurar melhor o gato que começou a se agitar.

– Calma. Romi, calminha… — ela sussurrou, palmilhando devagar o assoalho nas solas dos pés. Quando chegou ao quarto no extremo do corredor, apoiou-se na parede e ficou ouvindo. Abriu a porta. Espiou. A mulher conduzira sua cadeira até ficar defronte da janela, exposta ao vento que fazia esvoaçar seus cabelos tão finos como fios despedaçados de uma teia. Adriana ainda quis verificar se a medalha continuava presa ao pescoço do gato. Impeliu-o com força na direção da cadeira. Fechou a porta de mansinho.

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