A Testemunha – Conto de Lygia Fagundes Telles

Ele tinha o olhar fixo no anúncio luminoso, suspenso no fundo negro de um céu sem estrelas. Já fazia uma hora que linha o olhar fixo no anúncio onde um cisne branco aparecia fosforescente em primeiro plano no espaço tumultuado de nuvens. Logo em seguida, com ondulações de pétalas mansas, abria-se em torno do cisne um pequeno lago que chegava até quase a meia-lua branca da qual saía o letreiro. Cortado pelo perfil de um edifício. Só as cinco primeiras letras do anúncio eram visíveis, as outras desapareciam detrás do cimento armado.

– Belon — disse ele antes que as letras se apagassem Voltou-se devagar para o recém-chegado. — Belon, Belon…

O que será que vem depois desse Belon? Vai, Rold, me ajude.

– Belonave — disse o outro voltando-se para o luminoso. Encarou o amigo. E inclinou-se para o banco de pedra — Mas este banco está molhado, você vai pegar um resfriado pelo traseiro. Que idéia. Miguel, por que um encontro aqui? Este parque deve ser bom no verão.

– Não é Belonave, é outra coisa, Belon…

– Belominal. Contra dores, enxaquecas. Você está aqui há muito tempo?

Detesto umidade, as juntas começam a endurecer. Que noite!

– Não vou saber nunca Pode ser o nome de um colchão de molas.
Ou de uma geladeira. Ou de um uísque, tanta coisa já passou pela minha cabeça. Assim como um sino, hem, Rolf? Belon, Belon…

Rolf tirou a folha seca que se colara ao sobretudo do amigo.

– Se formos nesta direção, no fim da alameda a gente pode saber.

– Não é preciso, Rolf. Você sabe.

Rolf tomou o amigo pelo braço. Estava bem-humorado.

– O que é que eu sei?

Mancando um pouco, Miguel deixou-se conduzir. Ainda olhou o cisne lá no alto do seu lago fosforescente.

– Você sabe.

– Mas sei o que, meu Deus!

– O que aconteceu ontem à noite. Você sabe. Devo ter tido um acesso.

Então, não vai me dizer?

Rolf levantou a gola do casaco. Esfregou as mãos com energia — Umidade desgraçada. A gente podia ir comer um peixe com um bom vinho tinto, besteira isso de vinho branco com peixe. Quero um tinto ligeiramente aquecido, uau!

– Não vai me dizer, Rolf?

– Dizer o quê rapaz?

– O que aconteceu ontem.

– Ora, o que aconteceu! Mas então você não sabe?

– Não, não sei. Não me lembro de nada, nada.

– Mas como não se lembra?

– Não me lembro, simplesmente não lembro — repetiu Miguel torcendo as mãos muito brancas. Fechou-as contra o peito.

– Sei que você foi me visitar, isso eu sei. Mas depois não me lembro de mais nada, minha memória breca de repente justo nesse pedaço, fica tudo escuro.

Como aquele luminoso, olha lá, agora apagou completamente… Sei que aconteceu alguma coisa mas não lembro, não lembro. Você vai me dizer, não vai, Rolf? Responde, não vai me dizer? Hem?!

Rolf desviou o olhar da cara lívida, em suspenso na sua freme. Um vinco profundo formou-se entre suas sobrancelhas. Ainda assim, conseguiu sorrir. Segurou com firmeza o amigo pelo braço, obrigando-o a andar.

– Mas não aconteceu nada de especial, rapaz.. Não lenho o que contar.

– Não? Não tive um acesso, não fiz coisas?… Não banquei o…

– Não. Lógico que não. Se quiser mesmo saber, presta atenção, cheguei em sua casa por volta das nove. Comentei a beleza da noite, tanta estrela… Você me pareceu enfarruscado, se queixou de dor de cabeça, lembra?

– Disso eu me lembro. E daí?

– Daí você foi buscar uma aspirina, parece que a dor passou de repente. Então veio a hora da animação, você ficou todo excitado com o livro de um húngaro que estava lendo, não sei que livro é esse nem vem ao caso, o fato é que você desatou a falar. Falou, falou…

– Falei o quê?

– Falou sobre tudo. Sobre esse tal livro, sobre outros livros.

Enveredou pela política, fez uma análise fulgurante da situação do país…

– Fulgurante?

– Fulgurante. Comentou depois sobre uma fita de ficção científica, falou sobre a morte de Otávio. Milhares de coisas.

– E então…

– Então, acabou. Fiquei cheio, me deu vontade de tomar um café e fui até a cozinha, lembra?

– Não, desse pedaço não lembro mais. Vejo você chegando e dizendo uma coisa qualquer ligada à garrafa térmica, que o café se degradava na garrafa, não sei se usou essa palavras, degradar. Mas foi a palavra que me veio agora. E eu me queixando de uma dor bem aqui…

– Na nuca.

– Isso, na nuca — confirmou Miguel, apressando o passo para ficar ao lado do outro que tinha pernas compridas, andava mais rápido.

Afastou com um gesto exasperado o ramo de salgueiro que pendia no meio da alameda. — O resto esqueci, não sei de mais nada. Não sei.

– Pois quando voltei com o café você se queixou dessa dor, se estendeu no sofá e ficou dormindo feito uma criancinha. Fechei a luz e saí. Acabou.

– Por favor, Rolf, não fique com pena de mim que é pior ainda, pode dizer!

– Mas dizer o quê, se não aconteceu mais nada. Quer que eu invente, é isso?

Posso inventar, se quiser.

Seguiram andando. Rolf alguns passos adiante de Miguel que mancava um pouco.

– Sei que tinha uma pessoa por perto e essa pessoa só pode ser você — disse Miguel num tom indiferente. Baixou a aba do chapéu de feltro. Levantou a gola do sobretudo e enfiou as mãos nos bolsos. — Você sabe o que eu fiz. Mas não vai me dizer nunca.

Rolf chutou com irritação um pedregulho e abriu os braços. Cerrou os maxilares quando levantou a face para o céu e de repente pareceu se distrair com algumas estrelas que vislumbrou num rombo da nuvem.

– Milagre! Elas conseguiram mas não vai durar, olha aquela nuvem preta que já vem correndo e cobrindo tudo. Só vai chover mesmo lá pela madrugada, gosto de dormir ouvindo a chuva.

Miguel olhava em frente. O outro teve que se inclinar para ouvir o que ele dizia agora: — Hoje cedo encontrei o relógio despedaçado, aquele relógio em formulo de oito. Completamente despedaçado. E um rasgão no lençol. O relógio e o lençol.

– O lençol?

– Também não encontrei mais o Rex. A tigela de água virada, a porta da cozinha aberta… Eu tinha paixão por aquele cachorro. Sai procurando, perguntei na vizinhança, andei dando voltas pelo quarteirão. Nada. Você sabe, mas não vai me dizer. Estou vendo nos seus olhos a minha loucura, mas você não vai me dizer nada.

Caminharam algum tempo em silêncio. Pararam diante do lago de água verde-negra, aninhado entre as árvores. Os ramos mais longos do salgueiro chegavam a tocar na superfície estagnada, com coágulos finos como lâminas de vidro fosco. Rolf acendeu um cigarro, fez um comentário sobre a água que devia estar podre e tomou o amigo pelo braço. Sacudiu-o afetuosamente. Riu.

– Com esses elementos você pode reconstituir tudo, não pode? O relógio, o lençol. O cachorro. Você gostava de livro policial, não gostava?

Então é simples, estou preocupado é com o cachorro.

– Não brinca, Rolf. É sério. Eu preciso saber.

– Mas não estou brincando — disse e empurrou enérgico o amigo para a frente. — Vamos, rapaz, tudo bobagem, chega de se atormentar.

Não pensa mais nisso, não aconteceu nada.

Acho que você está precisando é de mulher, essa nossa vida, uma solidão miserável. Se tivesse por aí umas putinhas simpáticas, hum? Por onde andam nesta cidade as putinhas simpáticas, antigamente tinha tanta gueixa, vem me esquentar, vem me agradar! Elas vinham. Agora só encontro umas meninas chatas, tudo intelectual. Mania de feminismo, competição. Andei aí com uma nortista que me deixou tonto, falava feito uma patativa. Era socióloga, já pensou?

Um jovem de tênis e abrigo de inverno passou correndo e bufando entre os dois homens, que se afastaram para lhe dar passagem. Quando o jovem desapareceu na curva da alameda. Miguel Voltou-se para o amigo.

– Curioso isso. Como você sabe o que aconteceu, sempre que olho para você vejo que aconteceu alguma coisa.

– Ah, mas minha cara é muito expressiva! Miguel começou a torcer as mãos feito trapos. A silhueta atarracada, parecia maior devido ao sobretudo que vinha de um tempo em que era mais gordo. Levantou a face de um branco úmido.

– Por favor, Rolf, por favor! Preciso saber até que ponto eu cheguei, preciso.

– Mas o que você quer que eu faça? Só se eu tive o acesso junto, nós dois completamente loucos, quebrando coisas, espancando o cachorro. E agora esqueci tudo, os dois sem memória, esses ataques podem dar de parceria.

Ou não, sei lá.

Miguel enfiou as mãos nos bolsos e prosseguiu no seu andar meio incerto.

Sorriu para o amigo.

– Nós dois juntos. Rolf? Um acesso na mesma hora? Sacudiu-se de repente num riso reprimido. Enterrou o chapéu de feltro até as orelhas e acendeu o cigarro, divertia o a idéia do acesso em conjunto, “Nós dois.

Rolf? Ao mesmo tempo?” Rolf estava sério, andando no seu passo largo, cadenciado. Olhava o chão.

– Vamos sair deste parque. Sugiro comer alguma coisa.

– Isso mesmo. Rolf, também estou com fome. Peixe com vinho tinto meio aquecido, acho genial. Conheci outro dia um restaurante fabuloso, é meio longe mas Vale a pena. Vinho tinto italiano, o vinho eu ofereço.

– Machucou o pé, Miguel?

– Por quê?

– Você está mancando.

– Estou? — Ele se surpreendeu. Olhou espantado para os próprios pés. — Sabe que não sinto nada. Você disse que estou mancando?

– Um pouco.

– Não sinto nada.

Rolf tirou o lenço do bolso da japona e limpou o nariz. Olhou para o lenço enquanto o dobrava. Olhou para o amigo.

– Esse restaurante. É muito longe? Já está meio tarde, será que ainda servem a gente?

– Claro que servem, fica aberto até de madrugada. É a dona mesmo quem cozinha, uma espanhola chamada Esmeralda. Não sei o nome da rua mas sei onde fica, já fui lá um monte de vezes.

Rolf atirou a ponta do cigarro no canteiro. A fisionomia se desanuviou. Apertou os olhos de novo zombeteiros — Tive uma namorada chamada Esmeralda. Você não conheceu a Esmeralda?

– Não. Essa não.

– Ela era engraçada, só pensava em casar, acordava com esse pensamento, dormia com esse pensamento, casar. Então eu avisei, só me caso quando chegar aos quarenta, faltam dois anos. Nessa noite fizemos um amor tão perfeito, dormimos contentes. Me acordou de madrugada, descobriu não sei como minha cédula de identidade e montou em mim, seu mentiroso, você tem 45 anos, vamos casar Imediatamente!

– Imediatamente, Rolf?

Miguel tomara a dianteira, o passo curto, o cigarro apagado no canto da boca.

Quando saíram da avenida e entraram numa rua mais tranqüila, esperou pelo amigo até se emparelhar com ele. Sacudiu na mão uma caixa de fósforos.

– A marca que meu pai usava tinha um olho dentro de um triângulo, eu ficava fascinado quando ele guardava o olho suplementar dentro do bolso. Será que ainda existe essa marca?

Rolf mordiscou o lábio superior até prender nos dentes um fio do bigode.

Contornou com o braço o ombro do amigo.

– Presta atenção, Miguel, o que passou, passou. Não se preocupe mais, somos todos normalmente loucos. Fingimos até uma loucura maior mas não tem importância, faz parte do sistema, é preciso. De vez em quando, dá aquela piorada e piora mesmo, que diabo. E daí? O tal cotidiano acaba prevalecendo sobre todas as coisas que nem na Bíblia.

Isso de dizer que só um fio de cabelo nos separa da loucura total é tolice.

– Claro. Rolf, claro. Você tem razão Com as pontas dos dedos. Rolf começou a consertar o bigode.

Tirou de Miguel a caixa de fósforos que ele ainda sacudia.

– Você está com 51 anos.

– Cinqüenta e dois.

– Certo. Eu tenho três mais que você. E sua família, rapaz? Continua por aqui?

– Não, mudou-se para Casa Branca. Por quê?

– Lembrei agora da sua mãe. Ela fazia uns pastéis deliciosos.

– Fazia melhor o amor.

Rolf desviou do amigo o olhar oblíquo.

– Ai! meu Hamlet, que cansaço. E esse seu restaurante que não chega nunca. Hoje você está muito chato, cansei.

– Acho que é fome, Rolf, perdão, perdão! — E Miguel tomou o amigo pelo braço, ficou de repente descontraído, alegre, — Faz tempo que não como direito, deve ser isso. Mas juro que depois ainda vou cantar para você um tango inteirinho, Cuesta Abajo, tenho uma voz linda, com vinho então fica um esplendor.

– Nem diga.

Enveredaram por uma rua escura, quase deserta. No fim da rua, a ponte, um curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa subia mais densa na altura da água. Rolf parou de assobiar — Ainda está longe?

– O quê?

– O restaurante, rapaz.

– Ah, fica logo depois da ponte — disse Miguel. E inclinou-se pura amarrar o cordão do sapato. — Conheço tanto esse rio, eu morava aqui por perto quando criança. Todo sábado vinha nadar com a molecada. A água era suja mas imagine se me importava. Também remava, sempre tive mania de esportes. Não cresci muito mas olha só a largura do meu ombro.

– Eu sei, já vi.

Um cachorro perdido passou a uma certa distância. Estava enlameado e tinha uma pequena corda dependurada no pescoço. Miguel ficou olhando o cachorro.

– Podia ser o Rex — disse, e voltou-se para o amigo. Animou-se.

– Cheguei a ser campeão de bola ao cesto.

– Acho que foi por isso que você ficou desse jeito, vida muito saudável não dá certo. Sempre tive horror de clubes, uma chateação.

Miguel aproximou-se e puxou o outro pela manga. Riu.

– Um bicho-de-concha. Você devia ter aprendido ao menos a nadar.

– Namorei uma nadadora. Cheirava a cloro, por mais que se lavasse, tinha sempre um pouco daquele cheiro, principalmente no cabelo. É curioso, não me lembro da sua cara, só do cheiro.

Tinham atingido a ponte. Miguel parou. Olhou em redor.

– A gente se esquece de certas coisas e de outras… Ainda tem um cigarro? Rolf tirou do maço o último cigarro, que veio amassado.

– Fuma este.

– E você?

– Agora não quero.

Miguel abrigou na gruta da mão a chama do fósforo. A face avermelhou, esbraseada.

– Mas veja. Rolf, esqueci por completo o que aconteceu ontem e isso não teria a menor importância se não fosse você. Você e esta ponte.

A única ponte que me liga a véspera — disse e abaixou-se como se fosse amarrar o sapato.

Rolf abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bolsos, um pouco encolhido.

Miguel então veio por detrás e ainda agachado, agarrou o outro pelas pernas, ergueu-o rapidamente por cima do parapeito de ferro e atirou-o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito afogado, se engasgando.

Debruçado no gradil, Miguel ficou olhando o rio. Vislumbrou seu chapéu que tinha caído e agora flutuava meio de banda na água agitada.

Flutuou um instante com movimentos de um pequeno barco negro. Desapareceu, Um resto de espuma foi se diluindo na superfície acalmada.

Miguel apanhou no chão o cigarro ainda aceso e soprou, avivando a brasa. Amarfanhou devagar o maço vazio.
Durante algum tempo ficou fumando e contemplando a água. Fez do maço uma bola e atirou-a longe. Não se voltou quando ouviu passos atrás de si. Sentiu a mão tocar-lhe o ombro.

– É proibido atirar coisas no rio.

Ele mostrou para o policial a cara pasmada.

– Mas era um maço de cigarro, um maço vazio.

– Eu sei, mas não pode. É a lei. Miguel sorriu, concordando.

– O senhor tem razão — disse e levantou a mão para a aba do chapéu.

Interrompeu o gesto. — Toda razão. Não vou repetir isso, prometo. Mancando um pouco, atravessou a ponte e sumiu no nevoeiro.

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