O menino era a adoração daquela família de mulheres. Homens, ali, só mesmo o pai, um médico frustrado, e Bebeto, o filho único, então, com cinco anos. Criado nas saias da mãe, das tias, da babá negra, submetido a um carinho extremo e histérico, o guri saíra um fenômeno. Apesar da idade, ainda usava chupeta e, na falta desta, metia os cinco dedos na boquinha glutona e os chupava, ferozmente. No dia em que completou os cinco anos, fez-se na sala um círculo de tias, no centro do qual colocaram Bebeto. Então, uma das tias inclinou-se e fez a pergunta:
– Meu filho, quando você crescer, quer ser o quê, hein, meu filho?
Nenhuma resposta. Com o dedinho no nariz, intimidado, o pirralho parecia incerto da própria vocação. Uma das tias, com a habitual falta de graça dos adultos, sugeriu a blague antediluviana:
– Presidente da República, é?
Risos. Então, o pai, que estava fumando um charuto ordinaríssimo, aproximou- se. Espiou, por cima de vários ombros e decidiu:
– Vai ser médico, pronto. Médico como o pai!
Medicina
De noite, no quarto, dr. Sinval, que era o pai, e d. Detinha, que era a mãe, tiveram um pequeno bate-boca conjugal, a respeito. No seu preconceito contra a medicina, a mulher perguntava:
– Médico pra quê? Pra morrer de fome, como tu?
Em pé, no meio do quarto, o marido desabotoava a camisa. Ofendeu-se:
– Você já morreu de fome, já? Sossega, leoa?
A verdade é que o dr. Sinval carregava nas costas o peso de um duplo fracasso, na clínica e no lar. Ele próprio, com uma brutal amargura, bufava: “Sou um fósforo apagado na minha própria casa!” Todas as suas opiniões eram consideradas, textualmente, “palpite errado”. Desconsiderado pela esposa e pelas cunhadas, seu único e escasso prazer na vida limitava-se aos charutos, cujo odor sufocava. Mas com o hábito da derrota, dr. Sinval já se preparava para uma nova frustração na pessoa do filho. E, súbito, aconteceu um pequeno fato transcendente que fez inclinar a balança a seu favor. Tinha Bebeto oito anos quando o surpreenderam, certa vez, de canivete em punho, raspando as pernas de um passarinho vivo. Pronto! Como discutir uma evidência tão espetacular? Apanhando a avezinha ainda latejante, d. Detinha precipitou-se para dentro, numa euforia convulsiva. Exibiu o pássaro sem pernas, como um troféu minúsculo e incomparável.
– Dá pra médico! Dá pra médico! De noite, quando o marido chegou, d. Detinha anunciou, patética:
– Vai ser cirurgião!
Destino
Passou. Bebeto, tratado sempre na palma da mão, cresceu, faz o ginasial, etc., etc. Quando estava para entrar na Faculdade, o dr. Sinval o requisitou: “Vem cá, meu filho, vem cá!” Catou nos bolsos um charuto, cortou nos dentes a ponta do charuto e indagou: “Qual é o ramo de medicina que você prefere?” O rapaz não titubeou. Olhou para o teto e largou a bomba:
– Quero ser veterinário.
Estava sendo sincero. O ex-estripador de passarinhos virara a mão: tomava-se, agora, de uma piedade atroz dos animais. Não podia ver um cão vadio e sarnento no meio da rua, que não lhe fizesse festas, o diabo. Mas o pai, que sonhava para o filho uma clínica fabulosa, caiu das nuvens. E, pela primeira vez, perdeu a paciência e a compostura: “Veterinário, imagine!” E foi para a cidade rosnando: “Esse meu filho saiu-me uma boa besta!” Durante uma semana, andou amarguradíssimo, ruminando o problema. E chamou o filho, outra vez, para uma nova conversa, entre quatro paredes. Tratou de dissuadi-lo: “Sabes o que é que interessa, em medicina? Batata? Queres saber?” Baixou a voz: “Psiquiatria!” E o rapaz: “Por quê?” Acendendo um dos seus hedionos charutos, o velho expandiu-se:
– Porque psiquiatria é uma mina, um negócio da China.
– No duro?
Dr. Sinval, veemente, repetiu: “No duro, sim.” Argumentou com o próprio caso:
– Eu sou médico parteiro. E que ganhei com isso? — ele próprio respondeu, com um humor sinistro: — Dívidas e calotes. Ninguém me paga. As clientes espetam, ouviste? Penduram as contas, vê se te agrada?
O drama
A mãe de Bebeto e as tias benziam-se só de ouvir falar em psiquiatria. D. Detinha interpelou o marido: “Você quer que o Bebeto vá tratar de malucos?” Acrescentava, para os lados: “Deus me livre!” No fundo o que a assustava era a possibilidade de que um dos futuros clientes do filho o esganasse, num acesso homicida. Dr. Sinval teve que esclarecer:
– O Bebeto pode fazer psicanálise.
Explicou que a psicanálise não oferecia o menor perigo, nem para o médico, nem para o doente. Aventurou uma blague segundo a qual o mais perigoso dos dois era, ainda, o psicanalista. Impressionada, d. Detinha pediu outras explicações. Então, o dr. Sinval, mascando o charuto, afirmou:
– Sabe o que é a psicanálise, para encurtar conversa? Um bate-papo.
– Como assim?
E ele, convicto: “O médico senta e o cliente deita. Os dois se põem a conversar e pronto. Isto é a psicanálise.” Houve, em torno, uma impressão profunda, que tocou o próprio Bebeto. D. Detinha engoliu em seco: “Só?” Confirmou: “Só.” E foi acrescentando:
– Ainda por cima, o seguinte: o analisado não é doente nem aqui, nem na Conchinchina. Na maioria das vezes, tem uma saúde de ferro e vai lá porque não tem o que fazer e pode pagar duas mil pratas por sessão.
Boate
Ao longo dos meses, dos anos, dr. Sinval foi defendendo seus pontos de vista com obstinação. E não há dúvida que, em casa, as mulheres estavam tentadas por tamanha facilidade. Finalmente, Bebeto chegou ao último ano de medicina. Sem que o dissesse a ninguém, trazia, no mais íntimo de si mesmo, a melancolia do veterinário frustrado. Capitulara ante a psiquiatria porque era um fraco da vontade e porque a mãe e as tias haviam concordado. Avisara, porém, com a necessária antecedência: “De maluco, eu não trato.” Formou-se. Mas os colegas juravam, num exagero jocoso e cruel, que ele não saberia aplicar uma injeção, nem receitar um comprimido de dor de cabeça. No dia em que voltou da missa de formatura, reuniu- se, de novo, à família. Dr. Sinval disse, na ocasião:
– Agora, só está faltando um consultório, mas olha: é indispensável que seja um consultório com ar de boate. O ar de boate é o “X” do problema.
Então, com seu jeito de triste, Bebeto permitiu-se um desabafo: “O diabo é que eu não entendo tostão de psiquiatria!” Mas o pai estava lá, vigilante e atalhou; definitivo:
– Não entende, nem precisa entender. Além disso, não te esqueças disso: tu vais tratar de pessoas absolutamente sãs.
O filho, que não tinha um caráter muito firme e fora estragado pelos mimos, rosnou, numa pusilanimidade total: “Espeto! Espeto!” De noite, na hora dormir, a mãe foi levar-lhe, como de hábito, uma xícara de mate morno. Bebeto suspirou. Teve um lamento arrancado de suas profundezas:
– Eu quis tanto ser veterinário!
Inauguração
Aquelas mulheres, economizando tostão a tostão, através dos anos tinham juntado uma quantia substancial. E, assim, pôde montar-se, no centro da cidade, um consultório que parecia extraído das Mil e uma noites e oferecia no seu aspecto todo o ar necessário de uma boate. Era uma coisa tão bonita e insólita que d. Detinha exigiu do marido: “Olha, Sinval, você não pode fumar, aqui, seus charutos. Fume onde quiser. Aqui não.” Prontamente ele atendeu. Foi à janela, atirou em cima de um bonde um dos seus mata-ratos inenarráveis. No fundo, deu razão à mulher, pois lhe pareceu que fumar um charuto barato naquele ambiente seria uma profanação. Inaugurou-se, numa quinta-feira, o consultório quase oriental. Dr. Sinval, com as duas mãos nos bolsos, olhando de um lado para outro, inclusive para cima, com uma euforia de pai do proprietário, exclamou:
– Com esse troço aqui, tu podes cobrar, no barato, duas mil pratas por sessão!
Mas nessa noite, o novel analista entrou em casa com um gatinho que encontrara numa sarjeta, miando com a mais patética das sinceridades. Na cozinha deu leite num pires ao pequeno e solitário animal. Depois sentou-se na cadeira de balanço, com o gatinho no colo. E o afagou, horas a fio, com a mais desesperada das ternuras.
Primeira cliente
A primeira cliente que se submeteu à psicanálise do Bebeto foi uma grã-fina, loira e linda, que pagou as duas mil pratas da sessão, com lânguida naturalidade. Estava, ali, porque, 15 dias atrás, enfiara um cigarro aceso na vista de um gato, cegando-o. Fumando um outro cigarro, e com divertida curiosidade, perguntava ao jovem médico, dono de um consultório tão bonito:
– Isso quer dizer o quê?
Durante um longo, um infinito minuto, ele não respondeu nada. Súbito, estendeu a mão:
– Quer me ceder, um momento, o seu cigarro? Sem compreender, a grã-fina atendeu. Ele arremessou-se, então. Dominou-a rapidamente. Calcou, num dos seus olhos azuis e lindos a brasa do cigarro. Largou-a, cega, enchendo o edifício com seus gritos. Quando arrombaram a porta e invadiram a sala de psicanálise, ele, de braços cruzados, esperava, sem medo e sem remorso. Primeiro, foi levado para a delegacia. Depois, tiveram que interná-lo.